sábado, 31 de março de 2012

EXAME DE DNA NEGATIVO NÃO BASTA PARA ANULAR REGISTRO DE NASCIMENTO...


Para obter êxito em ação negatória de paternidade é necessário comprovar a inexistência de vínculo genético e, além disso, de vínculo social e afetivo. Com esse entendimento, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou recurso especial interposto por homem que, após mais de 30 anos, pretendia anular os registros de nascimento das duas filhas, nos quais consta o seu nome. 

O autor da ação sustentou que, após se casar, foi induzido a registrar como suas as filhas que a esposa teve com outro homem. Na época, ele não sabia que havia sido traído. Após um tempo, desconfiou da esposa, que confessou a traição. 

Apesar disso, ele nunca contou às filhas que não era seu pai biológico, nem mesmo após separar-se da esposa. Depois disso, a relação de pai continuou. “Quando já eram moças, ficaram sabendo que eu não era o pai delas. Eu senti muito, mas, para mim, sempre foram minhas filhas”, disse o homem em depoimento. 

 autor explicou que só entrou com o processo devido a uma disputa sobre bens, mas, independentemente disso, demonstrou o desejo de continuar sendo “o pai do coração delas”. 


Estado social 


Em primeira instância, a ação foi julgada improcedente em relação às duas, mesmo que uma delas não tivesse contestado o pedido. Para o juiz, embora o exame de DNA tenha oferecido resultado negativo para a paternidade, a ocorrência da paternidade socioafetiva deve ser considerada. 

Na segunda instância, a decisão do juiz foi mantida. Segundo a desembargadora relatora do acórdão, “sendo a filiação um estado social, comprovada a posse do estado de filhas, não se justifica a anulação do registro de nascimento”. Para ela, a narrativa do próprio autor demonstra a existência de vínculo parental.

 No recurso especial interposto no STJ, o autor sustentou que, apesar do reconhecimento do vínculo social e afetivo entre ele e as filhas, deveria prevalecer a verdade real, a paternidade biológica, sem a qual o registro de nascimento deveria ser anulado, pois houve vício de consentimento.

O autor citou o julgamento proferido em outro recurso especial, na Terceira Turma: “A realização do exame pelo método DNA, a comprovar cientificamente a inexistência do vínculo genético, confere ao marido a possibilidade de obter, por meio de ação negatória de paternidade, a anulação do registro ocorrido com vício de consentimento.”

Convivência Familiar 


Para o relator do recurso especial, ministro Luis Felipe Salomão, “em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar”.
“A pretensão voltada à impugnação da paternidade”, continuou ele, “não pode prosperar quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva.” 

O relator explicou que não é novo na doutrina o reconhecimento de que a negatória de paternidade, prevista no artigo 1.601 do Código Civil, submete-se a outras considerações que não a simples base da consanguinidade. Segundo ele, “exames laboratoriais hoje não são, em si, suficientes para a negação de laços estabelecidos nos recônditos espaços familiares”. 

“A paternidade atualmente deve ser considerada gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a socioafetiva”, disse Salomão. Segundo o ministro, as instâncias ordinárias julgaram corretamente o caso ao negar o pedido do autor e reconhecer a paternidade socioafetiva. 



FONTE: 1ª Promotoria de Justiça - Brusque





sexta-feira, 30 de março de 2012

ABSURDO!!!! - ATÉ ONDE OS BROCARDOS SERÃO UTILIZADOS DE MANEIRAS NEFASTAS - (Manual de calouros dita 'obrigação sexual' de alunas da UFPR)..


Um "manual de sobrevivência" distribuído a calouros do curso de direito da UFPR (Universidade Federal do Paraná) causou indignação de alunos. O livreto de oito páginas afirma que mulher "tem a obrigação de dar" e que não pode ser parcelado.

A informação é da reportagem de Jean-Philip Struck publicada na edição desta quinta-feira da Folha. A reportagem completa está disponível a assinantes do jornal e do UOL, empresa controlada pelo Grupo Folha, que edita a Folha.

O material afirma ainda que se uma garota disser "vamos com calma", o aluno deve dizer "não pode o devedor obrigar o credor a receber parte em uma prestação e parte em outra", segundo um trecho do artigo 252. E conclui: "Ela vai ter que dar tudo de uma vez".

O livro foi produzido pelo PDU (Partido Democrático Universitário), grupo que até 2011 comandava o centro acadêmico local, e começou a ser distribuído neste mês.
O estudante de direito André Arnt Ramos, presidente do PDU, disse à Folha, por e-mail, que o manual era uma "piada" e que não tinham a intenção de ofender ninguém". "Peço desculpas se isso aconteceu", disse Ramos.







quinta-feira, 29 de março de 2012

DE CONFORMIDADE COM A REALIDADE - Concubina tem direitos previdenciários? STF irá decidir em Repercussão Geral.




O Supremo Tribunal Federal, através de deliberação do Plenário Virtual, reconheceu a Repercussão Geral no Recurso Extraordinário nº 669465 no qual se discute a possibilidade de concubinato de longa duração suscitar efeitos previdenciários.
O Tribunal Recursal dos Juizados Especiais Federais do Espírito Santo havia decidido manter a sentença que determinava que a pensão por morte fosse rateada entre a concubina e viúva, ou seja, reconheceu os direitos previdenciários à concubina.
Diante desta decisão o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) interpôs o RE contra acórdão (decisão colegiada)ao argumento de que o artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição Federal, estaria sendo violado.
Assim, o ministro Luiz Fux, que é o relator do recurso entendeu que “a matéria não é novidade nesta Corte, tendo sido apreciada algumas vezes nos órgãos fracionários, sem que possa, contudo, afirmar que se estabeleceu jurisprudência”, e desta forma manifestou-se pela presença do requisito da repercussão geral, o que foi confirmado pela Corte.

Fonte:
BRASIL – Supremo Tribunal Federal, RE nº 669465, Rel. Min. Luiz Fux, Efeitos previdenciários em concubinato de longa duração tem repercussão geral – 27 de mar. de 2012 – Disponível http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=203568 Acesso em: 28 de mar. de 2012.

terça-feira, 27 de março de 2012

Ao ter conhecimento da invalidez laboral, segurado tem até um ano para pedir indenização de seguro coletivo


Beneficiário de seguro em grupo que não comunica o sinistro à seguradora e não ajuíza ação em até um ano após tomar conhecimento de sua incapacidade para o trabalho perde o direito à indenização. Nesse caso, ocorre prescrição, segundo decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O entendimento está consolidado nas Súmulas 101, 229 e 278 do STJ. O pedido de pagamento da indenização à seguradora suspende o prazo de um ano até que o segurado tome ciência da decisão.

Com base nessa jurisprudência, a Terceira Turma deu provimento a recurso da Santa Catarina Seguros e Previdência contra decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Reformando a sentença, o tribunal estadual garantiu o pagamento de seguro por invalidez permanente total a um trabalhador que sofreu acidente vascular.

A decisão de segundo grau considerou desnecessária a comunicação do sinistro à seguradora, entendendo que ela pode ser suprida pela citação na ação de cobrança movida pelo segurado. Também foi afastada a prescrição sob o fundamento de que a contagem do prazo prescricional começa no momento em que o segurado toma ciência da recusa do pagamento pela seguradora.

Como não havia prova do termo inicial do prazo prescricional, uma vez que não houve comunicação do sinistro, os desembargadores concluíram que o termo inicial seria a data do ajuizamento da ação.

Aviso do sinistro

A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, destacou que artigo 1.457 do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos, atribui ao segurado o dever de informar o sinistro à seguradora “logo que saiba’, sob pena de perder o direito à indenização”. A regra foi reproduzida no artigo 771 do novo código. Esse aviso seria condição para ajuizamento da ação de cobrança.

Conforme esclarece a relatora em seu voto, o aviso de sinistro representa o aspecto formal da solicitação de pagamento da indenização. Até então, a seguradora não está obrigada a pagar, simplesmente porque não tem ciência do evento. O comunicado, pois, serve para constituir em mora a seguradora.

Contudo, o STJ fez uma ressalva na interpretação desse dispositivo, ao julgar o Agravo Regimental no Recurso Especial 1.241.594, no ano passado. A Terceira Turma considerou que, mesmo sem a comunicação administrativa à seguradora, sua evidente recusa em pagar a indenização, ao longo do próprio processo, demonstra o interesse de agir do segurado. Foi essa a tese aplicada no caso.

Prescrição

Em relação à prescrição, a ministra Nancy Andrighi discordou da decisão do tribunal estadual, de que o prazo prescricional somente começaria a fluir após a ciência do segurado acerca da negativa da seguradora em pagar a indenização, bem como de que o segurado não está obrigado a comunicar à seguradora a ocorrência do sinistro.

Para ela, a tese adotada em segundo grau daria um prazo indeterminado para o segurado reclamar a indenização. Segundo a ministra, isso “viola frontalmente a segurança das relações jurídicas, princípio do qual emana o próprio instituto da prescrição”.

A relatora ressaltou a existência de julgados do STJ no sentido de que a caracterização da ciência inequívoca do segurado acerca da sua incapacidade laboral se dá, em regra, com a sua aposentadoria por invalidez ou por meio da perícia médica que a autoriza. A partir daí, passa a fluir o prazo prescricional de um ano para que o segurado comunique o sinistro à seguradora.

Na hipótese específica dos autos, o segurado tomou conhecimento inequívoco de sua incapacidade total e permanente para o trabalho em 4 de maio de 1999, tendo ajuizado a ação de cobrança somente em 4 de maio de 2001, ou seja, dois anos depois, “tornando patente a existência de prescrição”. A relatora afirmou que, como não houve comunicação do sinistro à seguradora, não se pode cogitar eventual suspensão de prazo prescricional.

Seguindo as considerações da relatora, a Turma deu provimento ao recurso da seguradora para declarar prescrita a ação de indenização.


FONTE: WWW.STJ.JUS.BR

quinta-feira, 22 de março de 2012

FILIAÇÃO - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - AVOENGA . LEGITIMIDADE ATIVA DA NETA

Recurso especial. Dissídio de jurisprudência. Família. Filiação. Parentesco. Paternidade responsável. Investigação de paternidade. Relação avoenga. Medida cautelar. Produção antecipada de prova. Exame DNA. Indeferimento. Pedido de neto em relação ao avô (pai ainda vivo). Hipótese em que houve tentativas judiciais, sem sucesso, do pai do neto em obter o reconhecimento paternidade. Não conhecimento da irresignação por dissídio jurisprudencial, dada a ausência de similitude fática entre o aresto impugnado e os precedentes da corte indicados como paradigmas, evidenciando o ineditismo do tema no âmbito desta corte (RISTJ, art. 255, § 2º). CPC, arts. 541 e 846. Lei 8.038/1990, art. 26. CCB/2002, art. 1.606, «caput». CCB, arts. 350, 351 e 363. Lei 8.560/1992, art. 1º, e ss.

NA INTEGRA:
I - Legitimidade ativa ad causam e Possibilidade jurídica do pedido:










III - Se existir escrito daquele a quem se atribui a paternidade, reconhecendo-a expressamente.

b) no CC/2002:

Art. 1.606. A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz.
Parágrafo único - Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo.

Como se vê, no Código Civil de 2002 não há repetição da norma do art. 363 do Código Civil de 1916, a qual referia apenas aos filhos como legitimados para «a ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação.

Merece, então, destaque o fato de que, ainda na vigência do Código de 1916, a jurisprudência do eg. Superior Tribunal de Justiça delineava que a menção a «pais» feita naquele dispositivo legal não poderia ser tida como limitação à investigação de outras relações de parentesco, além da paternidade.
De fato, no julgamento da Ação Rescisória 336/RS, a Corte chegou à seguinte conclusão:
CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO RESCISÓRIA. CARÊNCIA AFASTADA. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE RELAÇÃO AVOENGA E PETIÇÃO DE HERANÇA. POSSIBILIDADE JURÍDICA. CC DE 1916, ART. 363.

I. Preliminar de carência da ação afastada (por maioria).
II. Legítima a pretensão dos netos em obter, mediante ação declaratória, o reconhecimento de relação avoenga e petição de herança, se já então falecido seu pai, que em vida não vindicara a investigação sobre a sua origem paterna.
III. Inexistência, por conseguinte, de literal ofensa ao art. 363 do Código Civil anterior (por maioria).
IV. Ação rescisória improcedente.
(AR 336/RS, Segunda Seção, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO JUNIOR, DJ de 24/4/2006, grifo nosso)
Afirmou-se ali a possibilidade de, sem ofensa ao referido art. 363 do Código Civil de 1916, o pretenso neto ajuizar ação contra o suposto avô visando ao conhecimento de sua identidade genética e, assim, dos direitos e obrigações dela decorrentes. Cabe transcrever trechos dos votos de mérito dos eminentes Ministros Aldir Passarinho Junior (relator) e Jorge Scartezzini (revisor), in litteris:

VOTO DO MINISTRO ALDIR PASSARINHO JUNIOR:
Vencido na preliminar, examino o mérito da rescisória, que versa sobre apontada violação literal ao art. 363 do Código Civil anterior, que reza:
'Art. 363. Os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no art. 183, ns. I a VI, têm ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação'.
É que não compreendo na menção a pais a limitação enxergada pelos autores, e até doutrinária, porquanto dela extraio a mesma compreensão que teve a douta maioria então votante, no sentido de que a substituição é possível na linha ascendente, pois os avós geraram os pais, daí ser absolutamente legítimo que um neto busque a sua identidade verdadeira, a sua família, e, evidentemente, daí decorrendo seus direitos e obrigações.
Há muito se vem abrandando as exigências ao reconhecimento de filiação, e exemplo disso está no afastamento, mesmo antes do ECA, do prazo prescricional para que o filho busque o reconhecimento de paternidade, como se vê do EREsp 237.553/RO, 2ª Seção, Rel. p/acórdão Min. Ari Pargendler, DJU de 05.04.2004.
Se o direito é personalíssimo do filho investigar o pai, também o é em relação ao avô, notadamente porque o pai já é falecido, o que é importante sempre ressaltar. A relação parental não se extingue com uma geração, na linha ascendente ou descendente. É contínua.
E, inobstante a alentada e judiciosa doutrina a respeito, parece-me que em matéria de família – origem natural do ser humano – limitação dessa ordem, que se extrai de uma interpretação diminuta do texto legal, não convence ser a melhor, rogando máxima vênia ao entendimento divergente.» (grifo nosso)

VOTO DO MINISTRO JORGE SCARTEZZINI:
O art. 363, «caput», do CC/1916, vigente à época da prolatação do v. Acórdão rescindendo, encontrava-se assim disposto, in verbis:
'Os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no art. 183, I a VI, têm ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação.'
À primeira, não se ignora que, doutrina e jurisprudência, diante da peremptória redação de citado dispositivo, praticamente à unanimidade, sustentavam a restrição absoluta da legitimidade à propositura de ação investigatória de paternidade ao suposto filho, não extensível sequer aos seus herdeiros, os quais poderiam, tão-somente, dar prosseguimento à lide em caso de falecimento do autor na respectiva pendência (cf. fls. 26/79).
Repise-se, porém, que aludido entendimento restritivo encontrava-se, de regra, embasado tão-só na literalidade do dispositivo legal em comento, destacando-se, entre as escassas justificativas agregadas a esposado argumento, as seguintes elucubrações, de cunho moral, extraídas, respectivamente, das obras dos e. CLOVIS BEVILAQUA e CARLOS MAXIMILIANO:
'Justifica-se o rigor do princípio pelas considerações de que: 1º, ao indivíduo, exclusivamente, interessa a situação moral que lhe provém da sua legitimidade; ninguém poderá constrangê-lo a colocar-se numa posição social, que não deseja; 2º, o estado é um modo de ser próprio da pessoa que não se transmite a outrem.' ('Código Civil Anotado', v. 2, Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves, 1933, p. 316)
'A prerrogativa de investigar a paternidade é personalíssima; a ação cabe só ao filho; reserva-se a este o direito, absoluto, de evitar ou recusar uma devassa escandalosa no passado seu e de sua mãe.' ('Direito das Sucessões', v. I, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 1942, p. 297)
Pois bem, a uma, tenho que, mesmo imprimindo-se ao art. 363 do CC/1916 interpretação estritamente gramatical, conquanto não haja previsão acerca da legitimidade dos herdeiros de pretenso filho à interposição de demanda investigatória de paternidade, analogamente inexiste expressa vedação à mesma, pelo que, de plano, restaria afastada a impossibilidade jurídica de, excepcionalmente, conferir-se legitimidade aos netos para o ajuizamento de ação objetivando o reconhecimento de parentesco com suposto avô. A propósito, oportuna a transcrição das considerações expendidas pelo e. Ministro WALDEMAR ZVEITER , quando do julgamento do REsp 269/RS:
(...)
Ademais, ressalte-se, ainda que não se repute adequada a adoção de exegese genericamente liberalizante ao art. 363 do CC/1916, também é inegável que a interpretação meramente gramatical do mesmo em quaisquer situações, levando à ilegitimidade absoluta dos herdeiros de suposto filho para pleitearem o reconhecimento de parentesco ascendente, não se coaduna com a orientação preconizada no art. 5º da LICC, norma de sobredireito, segundo a qual, 'na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum'.
Com efeito, não se mostra razoável, à luz dos mais comezinhos princípios de justiça, com fulcro, exclusivamente, na ausência de previsão legal do pedido, ainda mais que tendente ao esclarecimento da genealogia, da própria origem do indivíduo, negar-lhe acesso aos órgãos jurisdicionais, em total detrimento ao princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF/88) e à necessidade de pacificação social, escopo último, aliás, do processo civil moderno:
(...)
A propósito, conquanto não se olvide que, in casu, a análise de afronta a literal disposição legal refira-se, por óbvio, à legislação vigente à época da prolatação do v. Aresto rescindendo, releva considerar que a conclusão pelo mesmo adotada, no sentido de conferir aos então recorrentes legitimidade para buscarem declaração judicial de existência de relação avoenga, encontra-se em consonância com os ditames da nova legislação civil pátria, na medida em que, embora não tenha o CC/2002 explicitamente adotado quanto ao tema orientação liberalizante, também não manteve a posição restritiva, não havendo sequer reproduzido, total ou parcialmente, o art. 363 do CC/1916.
Destarte, in casu, em atenção às respectivas peculiaridades, reputo acertada a exegese emprestada pelo v. acórdão rescindendo ao art. 363 do CC/1916, reconhecendo a legitimidade dos então recorrentes, ora réus, à propositura da Ação Declaratória de Relação Avoenga cumulada com Petição de Herança, notadamente ante a circunstância de se constituir fato público a possibilidade de existência do parentesco aduzido. Não há, pois, que se falar em vulneração a referido dispositivo infraconstitucional, na medida em que, ademais, conforme pacificado nesta Corte (REsp 488.512/MG, de minha Relatoria , DJU 06.12.2004; AR 464/RJ, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO , DJU 19.12.2003), para que a Ação Rescisória calcada no inciso V do art. 485, do CPC, prospere, é necessário que a interpretação dada pelo decisum rescindendo seja de tal modo aberrante que viole o dispositivo legal em sua literalidade, o que não ocorre no caso.» (grifo nosso)
Daí, pode-se inferir que, já na vigência do Código Civil de 1916, o eg. Superior Tribunal de Justiça percebia a necessidade de fazer uma interpretação sistemática dos dispositivos legais que tratavam do direito à filiação. Com isso, afastava a interpretação meramente literal, condizente com a época de criação do Código, mas que engessaria o ordenamento jurídico. A interpretação mais restrita já então mostrava-se desconforme com os princípios constitucionais incidentes, excluindo da apreciação do Poder Judiciário direitos fundamentais cuja relevância se sobrepõe à literalidade da norma.
Foi também essa a orientação esposada no primeiro precedente desta eg. Corte de Justiça que reconheceu a viabilidade do ajuizamento de ação declaratória de relação avoenga, no julgamento do Recurso Especial nº 269/RS. Salientou o Relator, o ilustrado Ministro WALDEMAR ZVEITER, em seu percuciente voto, que «vedar aos recorrentes o exercício do direito à ação seria negar-lhes a prestação jurisdicional, o que se não afigura nem jurídico nem justo. Não se põe dúvidas ser majoritário o entendimento, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, no sentido de que a ação de investigação de paternidade, assim como posta na redação do artigo 363 do Código Civil, é personalíssima. Contudo hoje, (...) há de se ler a redação dada ao artigo 363 do Código Civil não mais de forma restritiva e na ótica adequada a seu tempo, propugnada pelo grande Clóvis Beviláqua. Mudou a época, mudaram os costumes, transformou-se o tempo, redefinindo valores e conceituando o contexto familiar de forma mais ampla que com clarividência pôs o constituinte de modo o mais abrangente, no texto da nova Carta. E nesse novo tempo não deve o Poder Judiciário, ao qual incumbe a composição dos litígios com olhos postos na realização da Justiça limitar-se à aceitação de conceitos pretéritos que não se ajustem à modernidade» (Terceira Turma, DJ de 7/5/1990).
Eis a ementa do referido julgado:
«PROCESSUAL CIVIL - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - AÇÃO DECLARATÓRIA - RELAÇÃO AVOENGA.
I - Conquanto sabido ser a investigação de paternidade do art. 363 do código civil ação personalíssima, admissível a ação declaratória para que diga o Judiciário existir ou não a relação material de parentesco com o suposto avô que, como testemunha, firmou na certidão de nascimento dos autores a declaração que fizera seu pai ser este, em verdade seu avô, caminho que lhes apontara o Supremo Tribunal Federal quando, excluídos do inventario, julgou o recurso que interpuseram.
II - Recurso conhecido e provido.»
Com isso, tem-se também como afastada a impossibilidade jurídica do pedido.
Como se sabe, a possibilidade jurídica do pedido (ou da causa de pedir) demanda compatibilidade da pretensão com os fins e princípios do próprio ordenamento jurídico. Assim, o reconhecimento dessa condição da ação não tem o condão de dizer, de plano, o direito, julgando procedente o pedido autoral, mas de apurar se o fato afirmado pela parte mostra-se compatível com a possibilidade de eventual entrega de tutela jurisdicional, seja em face da existência de regulação normativa que, em tese, possa amparar a pretensão, seja em razão da inexistência de vedação legal.
Nesse sentido a jurisprudência do eg. Superior Tribunal de Justiça consagra o entendimento de que «a possibilidade jurídica do pedido consiste na admissibilidade em abstrato da tutela pretendida, vale dizer, na ausência de vedação explícita no ordenamento jurídico para a concessão do provimento jurisdicional» (REsp 254.417/MG, 4ª Turma, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe de 2.2.2009).
Conforme salientado pelo eminente Ministro Jorge Scartezzini, no voto proferido na mencionada AR 336/RS, acima transcrito, no Código Civil de 2002, ainda que não haja nenhuma previsão explícita de investigação de relação avoenga, também não há nenhuma vedação, explícita ou implícita, nesse sentido.
Portanto, hoje, quando o Código Civil já não reproduz a norma do antigo art. 363, trazendo apenas as dos anteriores arts. 350 e 351, no art. 1.606 do CC/2002, a melhor exegese desse dispositivo não pode permitir restrições quanto ao reconhecimento de relação avoenga. Assim, a este dispositivo também deve ser dada uma interpretação sistemática, prestigiando os direitos à filiação e à ancestralidade, sobretudo porque a própria Constituição Federal prestigia esses direitos, quando adota o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). Assim, deve ser afastada qualquer interpretação restritiva da norma, tendo em vista que a filiação não se esgota em uma só geração (relação entre pais e filhos); ao contrário, os vínculos de parentesco em linha reta tendem ao infinito. Há diversas outras relações parentais que surgem da relação pai e filho.
CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD, ao analisarem o disposto no mencionado art. 1.606 do Código Civil de 2002, ressaltam que não se deve ater a uma interpretação restritiva desse dispositivo. Salientam, para tanto:
«Apesar de se tratar de ação personalíssima, como visto alhures, os herdeiros do investigante, que já ajuizou a ação investigatória, têm legitimidade para prosseguir na ação, salvo se houve extinção do processo (parágrafo único do art. 1.606 do Código Civil).
No entanto, é preciso afirmar, mais do que isso, a legitimidade dos herdeiros (netos) para a propositura da ação, iniciando-a contra o avô. É a chamada investigação de parentalidade avoenga.
O art. 1.606 do Codex traz regra exatamente nesse sentido, autorizando os herdeiros a propor a ação 'se ele morrer menor ou incapaz'. Justifica-se a legitimação dos herdeiros em tal hipótese pela impossibilidade do investigante aforar a ação, em face de sua incapacidade. Assim, tendo falecido incapaz, e, por conseguinte, impossibilitado de ajuizar a ação pessoalmente, razoável que estejam legitimados os herdeiros.
Com base no tratamento constitucional da filiação - impossibilitando a limitação do estado de filiação - é preciso ir mais longe. Assim, afirmamos que o neto detém legitimidade ativa ad causam para promover a investigação contra o seu avô, independentemente de ter o investigante falecido no gozo de plena capacidade, exercitando a investigatória avoenga.
É que, como pontifica Belmiro Pedro Welter, 'o direito personalíssimo do filho é mesmo direito personalíssimo do pai, do avô, do neto etc. Se o filho não quer exercer o seu direito, não se pode proibir que o seu filho (neto) possa exercê-lo, sob pena de se estar negando ao neto o exercício de seu direito nativo de personalidade'.
Desse modo, o neto que propõe a investigatória contra o seu avô está perseguindo direito próprio, reclamando a sua ancestralidade, sua identidade genética, afirmando sua própria dignidade. Não fosse só isso, mister seu interesse também econômico, vez que passará a ser possível cobrar alimentos do avô, pleitear herança, alimentos etc.»
(in Direitos das Famílias. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2008, p. 548, grifo nosso)
NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, ao interpretarem o referido art. 1.606 do Código Civil, salientam:
«2. A ação declaratória de estado. A ação declaratória do estado de filho, conhecido como de investigação de paternidade, é apenas uma espécie do gênero, declaratória de estado familiar. Ela pode ser exercida por quem tenha interesse jurídico em atribuir a um determinado fato da vida uma conseqüência jurídica. Esse interesse pode ser revelado por alguém que pretenda apontar como sendo descendente de uma estirpe, ainda que longínqua. Os limites do pedido devem ser estabelecidos a partir das possibilidades reais de apuração da verdade e a partir da demonstração efetiva de interesse jurídico. Não contém nenhum fator de quebra do equilíbrio do sistema acolher-se para julgamento a pretensão de quem queira apontar a outrem uma ascendência parental, para apontar-lhe parentesco em linha reta, que o coloca na situação jurídica especialíssima de herdeiro necessário.
3. Situações diferentes. A) Imagine-se a possibilidade de alguém se dizer e provar ser neto ou bisneto de um grande pintor que aparentemente não tenha deixado bens, mas que tenha tido, após a sua morte, a obtenção de grande soma em virtude do pagamento de direitos autorais. Evidentemente, na ausência do filho que poderia, mas não quis, ver seu estado de filho reconhecido, pode o filho deste, neto daquele, vir a juízo para provar que é neto, descendente pela linha reta, e que faz jus à herança do avô? Será que o CC 1606 lhe impedira a pretensão? Parece-nos que não. O referido comando legal limita o direito de herdeiros postularem o direito próprio do de cujus, a não ser que este tenha falecido menor ou incapaz? Não limita, e se o fizesse seria inconstitucional, o direito próprio do herdeiro, no caso, o neto do pintor e, igualmente, seu herdeiro necessário. B) Observe-se como é diferente a situação de, no mesmo exemplo, o pintor (A) ter deixado filho (B), e este, um irmão por parte de mãe (C), que não fosse filho do pintor. Na ausência do filho do pintor, morto maior e capaz sem ter postulado a filiação em face do pintor, seu irmão não poderia postular o direito de herança, posto que se daria o óbice do CC 1606, aqui, sim, corretamente: o irmão (C), aspirante da herança de B, não é herdeiro, nem poderia sê-lo do pai de B (A), também morto. Sua pretensão limita-se à herança de B e nenhum direito próprio teria em face de A. Mas essa limitação, evidentemente, não alcança, nem poderia alcançar, o neto, igualmente herdeiro necessário, descendente em linha reta do falecido, ainda mais diante do claríssimo comando do CC 1811. É evidente, em casos assim, o interesse jurídico próprio de quem pretende declarar-se o estado de neto, ou de bisneto de outrem.»
(in Código Civil Comentado. 6ª ed., rev., amp. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 1.073-1.074, grifo nosso)
Então, no que tange à controvérsia dos autos, é de entender-se que, embora não haja previsão legal que regulamente, de forma direta, a declaratória de relação avoenga, também não há vedação expressa a inviabilizar seu ajuizamento.
E foi essa a compreensão adotada em precedente de que foi relator o ilustre Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, em julgamento que traz a seguinte ementa:
«RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. RELAÇÃO AVOENGA. RECONHECIMENTO JUDICIAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.
- É juridicamente possível o pedido dos netos formulado contra o avô, os seus herdeiros deste, visando o reconhecimento judicial da relação avoenga.
- Nenhuma interpretação pode levar o texto legal ao absurdo.» (REsp 604.154/RS, Terceira Turma, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ de 1º/7/2005, grifo nosso)
Há também recente precedente no âmbito da eg. Segunda Seção desta Corte de Justiça no sentido do reconhecimento da possibilidade jurídica do pedido e da legitimidade ativa ad causam, para o ajuizamento de ação de declaração de relação avoenga, tendo em vista a existência de direito de agir, próprio e personalíssimo, do suposto neto. Eis a ementa:
«Direito civil. Família. Ação de declaração de relação avoenga. Busca da ancestralidade. Direito personalíssimo dos netos. Dignidade da pessoa humana. Legitimidade ativa e possibilidade jurídica do pedido. Peculiaridade. Mãe dos pretensos netos que também postula seu direito de meação dos bens que supostamente seriam herdados pelo marido falecido, porquanto pré-morto o avô.
- Os direitos da personalidade, entre eles o direito ao nome e ao conhecimento da origem genética são inalienáveis, vitalícios, intransmissíveis, extrapatrimoniais, irrenunciáveis, imprescritíveis e oponíveis erga omnes.
- Os netos, assim como os filhos, possuem direito de agir, próprio e personalíssimo, de pleitear declaratória de relação de parentesco em face do avô, ou dos herdeiros se pré-morto aquele, porque o direito ao nome, à identidade e à origem genética estão intimamente ligados ao conceito de dignidade da pessoa humana.
- O direito à busca da ancestralidade é personalíssimo e, dessa forma, possui tutela jurídica integral e especial, nos moldes dos arts. 5º e 226, da CF/88.
- O art. 1.591 do CC/02, ao regular as relações de parentesco em linha reta, não estipula limitação, dada a sua infinitude, de modo que todas as pessoas oriundas de um tronco ancestral comum, sempre serão consideradas parentes entre si, por mais afastadas que estejam as gerações; dessa forma, uma vez declarada a existência de relação de parentesco na linha reta a partir do segundo grau, esta gerará todos os efeitos que o parentesco em primeiro grau (filiação) faria nascer.
- A pretensão dos netos no sentido de estabelecer, por meio de ação declaratória, a legitimidade e a certeza da existência de relação de parentesco com o avô, não caracteriza hipótese de impossibilidade jurídica do pedido; a questão deve ser analisada na origem, com a amplitude probatória a ela inerente.
- A jurisprudência alemã já abordou o tema, adotando a solução ora defendida. Em julgado proferido em 31/1/1989 e publicado no periódico jurídico NJW (Neue Juristische Woche) 1989, 891, o Tribunal Constitucional Alemão (BVerfG) afirmou que 'os direitos da personalidade (Art. 2 Par. 1º e Art. 1º Par. 1º da Constituição Alemã) contemplam o direito ao conhecimento da própria origem genética.'
- Em hipótese idêntica à presente, analisada pelo Tribunal Superior em Dresden (OLG Dresden) por ocasião de julgamento ocorrido em 14 de agosto de 1998 (autos nº 22 WF 359/98), restou decidido que 'em ação de investigação de paternidade podem os pais biológicos de um homem já falecido serem compelidos à colheita de sangue'.
- Essa linha de raciocínio deu origem à reforma legislativa que provocou a edição do § 372ª do Código de Processo Civil Alemão (ZPO) em 17 de dezembro de 2008, a seguir reproduzido (tradução livre): '§ 372ª Investigações para constatação da origem genética. I. Desde que seja necessário para a constatação da origem genética, qualquer pessoa deve tolerar exames, em especial a coleta de amostra sanguínea, a não ser que o exame não possa ser exigido da pessoa examinada. II. Os §§ 386 a 390 são igualmente aplicáveis. Em caso de repetida e injustificada recusa ao exame médico, poderá ser utilizada a coação, em particular a condução forçada da pessoa a ser examinada.'
- Não procede a alegada ausência de provas, a obstar o pleito deduzido pelos netos, porque ao acolher a preliminar de carência da ação, o TJ/RJ não permitiu que a ação tivesse seguimento, sem o que, não há como produzir provas, porque não chegado o momento processual de fazê-lo.
- Se o pai não propôs ação investigatória quando em vida, a via do processo encontra-se aberta aos seus filhos, a possibilitar o reconhecimento da relação avoenga; exigem-se, certamente, provas hábeis, que deverão ser produzidas ao longo do processo, mas não se pode despojar do solo adequado uma semente que apresenta probabilidades de germinar, lançando mão da negativa de acesso ao Judiciário, no terreno estéril da carência da ação.
- O pai, ao falecer sem investigar sua paternidade, deixou a certidão de nascimento de seus descendentes com o espaço destinado ao casal de avós paternos em branco, o que já se mostra suficiente para justificar a pretensão de que seja declarada a relação avoenga e, por consequência, o reconhecimento de toda a linha ancestral paterna, com reflexos no direito de herança.
- A preservação da memória dos mortos não pode se sobrepor à tutela dos direitos dos vivos que, ao se depararem com inusitado vácuo no tronco ancestral paterno, vêm, perante o Poder Judiciário, deduzir pleito para que a linha ascendente lacunosa seja devidamente preenchida.
- As relações de família tal como reguladas pelo Direito, ao considerarem a possibilidade de reconhecimento amplo de parentesco na linha reta, ao outorgarem aos descendentes direitos sucessórios na qualidade de herdeiros necessários e resguardando-lhes a legítima e, por fim, ao reconhecerem como família monoparental a comunidade formada pelos pais e seus descendentes, inequivocamente movem-se no sentido de assegurar a possibilidade de que sejam declaradas relações de parentesco pelo Judiciário, para além das hipóteses de filiação.
- Considerada a jurisprudência do STJ no sentido de ampliar a possibilidade de reconhecimento de relações de parentesco, e desde que na origem seja conferida a amplitude probatória que a hipótese requer, há perfeita viabilidade jurídica do pleito deduzido pelos netos, no sentido de verem reconhecida a relação avoenga, afastadas, de rigor, as preliminares de carência da ação por ilegitimidade de parte e impossibilidade jurídica do pedido, sustentadas pelos herdeiros do avô.
- A respeito da mãe dos supostos netos, também parte no processo, e que aguarda possível meação do marido ante a pré-morte do avô dos seus filhos, segue mantida, quanto a ela, de igual modo, a legitimidade ativa e a possibilidade jurídica do pedido, notadamente porque entendimento diverso redundaria em reformatio in pejus.
Recurso especial provido.»
(REsp 807.849/RJ, Segunda Seção, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJe de 6/8/2010, grifo nosso)
É, pois, de ter-se como juridicamente possível ao neto investigar o vínculo de parentesco avoengo, como forma de materialização de importante aspecto do direito da personalidade. Sem dúvida, a declaratória de relação avoenga caracteriza-se como ação de estado, fundada no status familiae, destinada a dirimir conflito de interesse relativo ao estado de uma pessoa natural. Envolve discussão de verdadeiro direito da personalidade e, como tal, é imprescritível, irrenunciável e inalienável.
Com efeito, tratando-se de direito próprio, o neto deve ser considerado parte legítima para o ajuizamento de ação visando, em última análise, ao reconhecimento de relação avoenga. A prerrogativa de ver reconhecida a relação de parentesco constitui direito próprio, personalíssimo com relação ao nome e à ancestralidade. Não se trata de exercício do direito de ação em nome de outrem (legitimação extraordinária) - ou seja, ajuizamento de ação pelo neto, em nome do pai, para investigar a paternidade deste -, mas de ação de declaração de relação parental avoenga ajuizada em nome próprio pelo neto para atender a interesse próprio de conhecimento de sua ancestralidade e, consequentemente, dos direitos a ela inerentes.

Portanto, mostram-se presentes as condições da ação ora tratadas para o ajuizamento de ação cautelar de produção antecipada de prova, para instrução de futura declaratória de relação avoenga. ...» (Min. Raul Araújo).

II - Coisa Julgada:

Dispõe o art. 468 do Código de Processo Civil: «A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.»
Por sua vez, a norma inserta no art. 472 do Estatuto Processual Civil estabelece, in verbis:
«Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.»
Da leitura de tais normas verifica-se que, para a configuração da res iudicata, é necessário identidade de partes, causa de pedir e pedido (CPC, art. 301, inciso VI e § 2º). Fora dessa tríplice identidade não há como invocar-se a autoridade da coisa julgada. Basta, portanto, a não coincidência de um desses elementos na nova demanda para que fique afastada qualquer ofensa à coisa julgada. Este é o escopo da garantia constitucional da res iudicata (CF, art. 5º, XXXVI), a qual imuniza o decisum transitado em julgado nos limites da lide, ou seja, do que foi decidido acerca de determinada pretensão ou demanda estabelecida entre partes específicas (CPC, arts. 468, 471 e 472).
Com efeito, a coisa julgada possui limites objetivos e subjetivos.
A limitação objetiva da coisa julgada (CPC, art. 468) estabelece-se em torno do fato de que a sentença tem força de lei nos limites da lide decidida, sendo certo que «a lide decidida é aquela levada a juízo através de um pedido da parte, colocado como questão principal. Logo, resta evidente que, de acordo com esse artigo, a autoridade da coisa julgada só recai sobre a parte da decisão que julga o pedido (a questão principal, a lide), ou seja, sobre a norma jurídica concreta contida no seu dispositivo» (in DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, Vol. 2, 2ª ed., Salvador: Jus Podivm, 2008, p. 561).
Por sua vez, a limitação subjetiva da coisa julgada (CPC, art. 472) informa que a res iudicata estabelecida entre as partes não pode atingir desfavoravelmente ou beneficiar terceiro que não integrou a lide, ressalvadas, é claro, as hipóteses de eficácia ultra partes dos atos judiciais (v.g: sucessão; substituição processual) e de eficácia erga omnes dos atos judiciais (v.g: ações coletivas que versem sobre direitos difusos ou direitos individuais homogêneos; ações de controle concentrado de constitucionalidade).
Nas palavras de Chiovenda: «Tutti sono tenuti a riconoscere il giudicato tra le parti, ma non possono esserne pregiudicati», ou seja, «a coisa julgada formada entre as partes não pode ser desconhecida por ninguém, mas ninguém além das partes pode ser atingido desfavoravelmente por ela, sem sua própria esfera de direitos».
Ressalte-se, por oportuno, que a parte final do art. 472 (causas relativas ao estado de pessoas) não trata de hipótese de eficácia ultra partes dos atos judiciais, ao contrário do que precipitadamente se possa deduzir, mas de eficácia inter partes. Nas ações de estado - como o é a dos presentes autos - devem ser citados todos os interessados, para que, em relação a eles, a sentença seja válida e eficaz. Haverá, no caso, litisconsórcio necessário e, pois, eficácia do julgado entre as partes que compõem o feito.
A respeito do tema, confira-se a lição de FREDIE DIDIER JÚNIOR:
«6. Coisa Julgada nas Ações de Estado
A parte final do art. 472 está assim redigida: 'Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros'.
A Redação do dispositivo pode dar a falsa impressão de que, em ações de estado, a coisa julgada é ultra parte. Na verdade, a regra diz respeito ao litisconsórcio: em ações de estado, todos os interessados devem ser citados, para que a sentença seja válida e lhes possa ser eficaz. Impõe-se a necessidade do litisconsórcio em tais situações, de resto já extraível do art. 47 do CPC. Se todos os interessados forem citados, todos se submeterão à coisa julgada, porque terão sido parte no processo.»
(in Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, Vol. 2, 2ª ed., Salvador: Jus Podivm, 2008, p. 567)
Na hipótese em exame, de um lado, a lide não envolve partes idênticas. Na presente ação cautelar de produção antecipada de prova, objetivando a realização de exame de DNA, embora a parte ré seja coincidente - D. H. Z. -, a parte autora - S. C. - é diversa da daquelas outras ações, ajuizadas pelo pai da ora promovente.
Ademais, no âmbito da ação investigatória de paternidade - que é ação de estado -, não houve a formação de litisconsórcio, com a inclusão no feito da pretensa neta, ora recorrente (CPC, art. 472, parte final).
Portanto, em face dela não se estendeu a eficácia das decisões proferidas naqueles outros feitos.
De outro lado, a causa de pedir e o pedido, nesta ação, são diversos daqueles constantes das demandas anteriores. Neste processo a pretensão de direito material relaciona-se à investigação de relação avoenga, enquanto naqueles outros feitos, à investigação de paternidade. Embora essas relações de parentesco estejam na mesma linha reta - de maneira que da paternidade é que resulta, em tese, a relação avoenga -, cada qual corresponde a um direito personalíssimo próprio do respectivo titular, constituindo, pois, causa de pedir e pedidos distintos.
Acrescente-se, por oportuno, que o afastamento da paternidade, naquela primeira ação investigatória - ajuizada por J. D. dos S. M. (pai da ora recorrente) contra D. H. Z. (suposto avô da ora recorrente) -, não foi feito com base em prova contundente (exame de DNA), porquanto: (I) à época da primeira demanda ajuizada pelo pai da ora recorrente, julgada improcedente, este tipo de exame, fundado no pareamento cromossômico, ainda não era amplamente disponível, nem havia notoriedade a seu respeito; (II) nessa primeira demanda a paternidade fora afastada com base em simples exame hematológico, o qual, como se sabe, no âmbito técnico-científico não possui a mesma robusteza do mencionado exame genético; e (III) na rescisória e na nova ação investigatória, ajuizadas posteriormente também pelo pai da ora recorrente, a despeito de o mencionado exame ter sido requerido, não fora aceita a sua realização, tendo sido as demandas extintas com base em ofensa à coisa julgada, formada naquele primeiro feito, e não com base na exclusão da própria paternidade.
Nesse contexto, os impedimentos havidos naquelas ações anteriores ao conhecimento definitivo e preciso da relação de parentesco existente entre o pai da ora recorrente e seu suposto avô não podem obstar esta nova ação movida por pessoa diversa, buscando alcançar direito próprio e personalíssimo de conhecer sua ancestralidade, agora com base em nova técnica da engenharia genética não disponível anteriormente.
Noutro giro, pode-se ainda ter em conta que a autoridade da coisa julgada reporta-se ao momento em que a sentença foi proferida, de maneira que nova relação jurídica ou nova situação de fato ou de direito surgida posteriormente - e que não tenha sido objeto do julgamento anterior, o qual, inclusive, envolvia partes, causa de pedir e pedido diversos - torna-se alheia à imutabilidade do instituto da res iudicata.
É oportuno invocar a lição de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, in verbis:
«Não é de hoje que, sempre forte na lição de Liebman, venho asseverando que a autoridade da coisa julgada material, sujeita-se sempre à regra rebus sic standibus, de modo que, sobrevindo fato novo, 'o juiz, na nova ação, não altera o julgado anterior, mas, exatamente para atender a ele, adapta-se ao estado de fato superveniente. Eis o ensinamento do Mestre:
'è superfluo dire che la cosa giudicata non impedisce l´eventuale sopraggiungere de fatti nuovi, che possono naturalmente modificare la situazione fra le parti (per es., l´adempimento del debitore, una transazione ecc.)'.
Tudo isso é muito natural quando se sabe que o instituto da coisa julgada material é movido pelo escopo prático de imunizar os efeitos do julgamento proferido acerca de determinada pretensão ou demanda, para que, naquela situação, outra decisão o caso não possa vir a ter jamais. Nem é por acaso que o direito positivo limita a coisa julgada não só às partes e ao objeto do pedido, mas ainda à causa de pedir. Fora da tríplice identidade não há a auctoritas rei judicatae, justamente porque, variando um desses elementos, o litígio já será outro (CPC, art. 301, § 2º). Nova situação, nova decisão. A garantia constitucional da coisa julgada (Art. 5º, inc. XXXVI) não vai além de estabelecer que, com relação ao litígio posto em juízo e na situação de fato ali considerada, novos questionamentos serão ilegítimos. Ela imuniza o decisum, como está claro no direito positivo, nos limites do que foi julgado.
(...)
As lições assim colhidas recebem legitimidade da óbvia observação de que a vida das pessoas e suas relações entre si e com os bens da vida não são algo estanque e imutável, insuscetível às evoluções conaturais à vida em sociedade. Não é permitido discutir mais se, no momento do trânsito em julgado, as relações entre os litigantes eram aquelas afirmadas pela sentença e sujeitas aos efeitos desta; mas, surgindo nova relação ou nova situação oriunda de fato ou negócio novo, essa nova relação - que não foi objeto de julgamento - considera-se alheia a ditos efeitos e, por natural conseqüência, alheia também à sua imutabilidade.
Claramente nesse sentido é a exposição de Bedaque, falando da coisa julgada como imutabilidade da sentença e de seus efeitos em relação ao direito já existente e proclamado: 'nada impede,, porém, que acontecimentos posteriores influam naquela situação, alterando-a. A decisão judicial, obviamente, não pode impedi-los. São fatos novos incidentes sobre a situação substancial será tanto menor quanto mais dinâmica ela se apresentar'.
(...)
Exatamente porque a coisa julgada se reporta ao momento em que a sentença foi proferida, sem considerações futurológicas de qualquer ordem, ela tem somente o significado de imunizar, sempre com referência àquele momento, os efeitos da sentença, sobre a qual incide. Se esta afirma a existência atual de um direito ou obrigação (atual no momento em que foi proferida), a coisa julgada impede que se volte a questionar a existência dessa situação jurídica naquele momento, mas não impede que se discuta sobre se depois dela o direito ou obrigação persiste ou deixou de existir.
(...)
Na ordem jurídico-positiva brasileira esses pensamentos transparecem na regra de que, 'passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas que a parte poderia opor assim ao acolhimento como a rejeição do pedido' (CPC, art. 474). Tal é a eficácia preclusiva da coisa julgada, que não se confunde com esta mas sem a qual a coisa julgada valeria muito pouco. Ela consiste em imunizar a própria res judicata a possíveis esvaziamentos mediante o exame de fatos anteriores. Diz-se que o efeito preclusivo da coisa julgada cobre o deduzido e o dedutível, sendo absolutamente imperativo entender-se, a contrario sensu, que não fica abrangida por qualquer matéria que, por ser posterior, não fosse (obviamente) suscetível de deduzir-se antes do julgamento da causa. Se o direito se extinguiu ou modificou-se depois da prolação da sentença e do trânsito em julgado, ou se de algum modo as relações jurídicas entre os que foram litigantes passaram a reger-se por outro negócio jurídico, tais são situações novas que, por não terem sido consideradas, não foram objeto de decisão e não ficam portanto cobertas pela coisa julgada ou por sua eficácia preclusiva.»
(in Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo II. 6ª ed., Malheiros: SP, 2010, pp. 1.170/1.173, grifo nosso)
Na hipótese, o Poder Judiciário não pode desconsiderar os avanços técnico-científicos inerentes à sociedade moderna, os quais possibilitam, por meio de exame genético (DNA), o conhecimento da verdade real, delineando, praticamente sem margem de erro, o estado de filiação ou parentesco de uma pessoa. Com a utilização desse meio de determinação genética, tornou-se possível uma certeza científica (quase absoluta) na determinação da filiação, enfim, das relações de ancestralidade e descendência.
Relativamente ao caso sob exame, a decisão que deixou de acolher aquela referida ação rescisória ajuizada antes pelo pai da ora recorrente, fundada em documento novo, não se ajusta com a linha da jurisprudência desta eg. Corte de Justiça (cf.: REsp 653.942/MG; REsp 442.780/SP e REsp 300.084/GO).
Assim, sendo a paternidade anteriormente julgada improcedente em ação investigatória, com base em insuficiência de elementos probatórios (testemunhas ou exame sanguíneo inconclusivo), em período em que não era acessível a investigação de paternidade por exame genético preciso e hoje de fácil realização, deve ser possibilitada a rediscussão da relação de parentesco que, rigorosamente, nem chegou a ser negada antes, apenas não foi reconhecida. Agora, em nova ação investigatória, a relação avoenga poderá ser questionada por pessoa diretamente interessada, fundada em técnica científica precisa.
Sustentando posicionamento mais agudo, CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD bem delineiam o tema, perfilhando que o instituto da coisa julgada não pode ser visto de forma estanque, em desprestígio aos direitos, constitucionalmente consagrados, de filiação e de conhecimento da identidade genética e da ancestralidade. Eis as ponderações desses ilustres doutrinadores:
«4.5.20. A Coisa Julgada nas Ações Filiatórias
Historicamente, a coisa julgada na ação de investigação de paternidade esteve submetida ao sistema processual clássico, tornando imutáveis os efeitos decorrentes da sentença de mérito, contra a qual não mais seja cabível qualquer recurso.
Mesmo na hipótese de investigatória de paternidade promovida pelo Ministério Público, na qualidade de substituto processual, ainda assim os efeitos da coisa julgada se projetavam, atingindo o investigante.
Induvidoso, no entanto, que o sistema da coisa julgada do Código de Processo Civil, alçado a altitude de garantia constitucional (CF, art. 5º, XXXVI), não pode ter guarida nas ações filiatórias, dentre elas a investigatória de parentalidade, sendo necessário afirmar o desenho de um novo modelo de coisa julgada para regular tais demandas.
Importante destacar que esse novo sistema de regramento da coisa julgada independe de expressa previsão de lei, podendo ser aplicado aos casos concretos, a partir das concepções e princípios constitucionais, visando promover a dignidade da pessoa humana e a isonomia substancial, determinadas constitucionalmente.
Em suma: as regras ordinárias sobre a coisa julgada não podem ir de encontro a Lex Mater, nem - o mais importante! - se sobrepor aos direitos mínimos da existência humana, como a verdade sobre a paternidade. Pensar diferente e trafegar na contramão da história e colidir frontalmente com a evolução das pesquisas genéticas. Se assim não o fosse, qual a vantagem do avanço cientifico, do estudo da genética, por exemplo? A ciência, nesta área, está a serviço da verdade e se nos impõe usa-la. Veja-se, inclusive, que se a verdade é conceito de índole filosófica, sendo possível encontra-la, em tais casos, com o amparo cientifico, sobreleva sua utilização racional, a serviço do bem-estar do homem digno.
Não se pode canonizar o instituto da coisa julgada, de modo a afrontar a própria sociedade e o ser humano. Deve se ponderar pelo princípio da proporcionalidade qual dos interesses deve prevalecer no caso concreto: mais vale a segurança ou a justiça. E afigura-se-nos mais relevante prevalecer o valor justiça, pois sem ela não ha liberdade qualquer.
Mas não é só. E preciso observar que as ações sobre a filiação não podem ficar emolduradas nas estreitas latitudes da coisa julgada regulada pela lei processual (CPC, arts. 467 e ss.). Aliás, se a intangibilidade da coisa julgada quedou mitigada nas ações coletivas (relativas a relações de consumo, proteção ambiental, moralidade administrativa etc.), com muito mais razão deve ser relativizada, suavizada, nas ações filiatórias. Enfim, e injusto vedar-se para sempre a pessoa humana o direito de pleitear o reconhecimento de sua filiação, que se lhe constitui direito absoluto sagrado, indisponível e inerente a própria personalidade. Desse modo, e fácil perceber a necessidade de adaptação do sistema de coisa julgada nas ações filiatórias, respeitando as garantias constitucionais da pessoa humana.
Uma coisa é certa: as regras gerais sobre a coisa julgada, talhada no sistema individualista do Código Adjetivo, devem ser interpretadas com razoabilidade na ação investigatória, eis que poderia implicar a negação do próprio direito material correspondente, frustrando o caráter instrumental do direito processual, que serviria como óbice a concretização efetiva do direito a filiação, garantido constitucionalmente.
Veja-se, inclusive, que não se faz necessário justificar a propositura de qualquer ação rescisória, com vistas ao rejulgamento da ação filiatória, eis que a decisão judicial que não exaurir os meios de prova não passa em julgado afastando-se do manto sagrado da coisa julgada.
É mister afirmar, então, que a coisa julgada na ação investigatória se dará sob a técnica secundum eventum probationes. Ou seja, a coisa julgada se forma a depender do resultado da produção probatória, identicamente ao que se tem nas ações coletivas.
Também não se diga, ainda, que a coisa julgada constitui garantia prevista no Texto Constitucional, uma vez que a igualdade e a dignidade da pessoa humana também tem sede constitucional e o conflito de normas de igual hierarquia e solucionado pelo principio da proporcionalidade (poderão de interesses), devendo prevalecer, por obvio, a garantia ao reconhecimento da filiação. Ademais, não pode o processo servir de obstáculo para o exercício de direito material.
Reafirme-se, nesse passo, que e a norma constitucional protetiva do cidadão quem prevalece em nosso sistema jurídico. Por isso, negar o direito do filho em investigar a paternidade do seu pai, invocando barreiras ou formalismos processuais, e inaceitável e colide frontalmente com o principio da dignidade humana, fazendo tabula rasa dos direitos fundamentais.
Importantíssimo precedente sobre a matéria emanou do Superior Tribunal de Justiça:
'Processo Civil. Investigação de paternidade. Repetição de ação anteriormente ajuizada, que teve seu pedido julgado improcedente por falta de provas. Coisa julgada. Mitigação. Doutrina. Precedentes. Direito de Família. Evolução. Recurso acolhido. I - Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigado de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido. II - Nos termos da orientação da Turma, 'sempre recomendável a realização de pericia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza' na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, esta na substituição da verdade ficta pela verdade real. III - A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso da investigação de paternidade, deve ser interpretada 'modus in rebus'. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, 'a coisa julgada existe como criação necessária a segurança prática das relates jurídicas e as dificuldades que se opõem a sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não ha liberdade IV - Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e as exigências do bem comum» (STJ, Ac.unan. 4ª T., REsp.226.436/PR, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j.28.6.01).
Pensar diferente e voltar no tempo, para entender que o processo deveria prevalecer sobre o próprio direito material. Assim, avulta afirmar a necessária relativização da coisa julgada pela jurisprudência, evitando tormentos e indevidas negações do direito a filiação.
A nossa jurisprudência registra, nesse sentido, importante passagem: 'mudou a época, mudaram os costumes, transformou-se o tempo, redefinindo valores e conceituando o contexto familiar de forma mais ampla que, com clarividência, pós o constituinte de modo a mais abrangente, no texto da nova Carta. E nesse novo tempo não deve o Poder Judiciário, ao qual incumbe a composição dos litígios com olhos na realização da justiça, limitar-se a aceitação de conceitos pretéritos que não se ajustem a modernidade'.
Vale registrar, por derradeiro, que, buscando tratar a matéria no plano positivo, apresentando uma solução de lege ferenda, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 116/01, de autoria do Senador Valmir Amaral, dispondo: 'art. 1º A ementa da Lei 8.560/92 passa a ter a seguinte redação: 'Regula a investigação de paternidade'. Art. 2º O art. 8º da Lei 8.560/92 passa a ter a seguinte redação: (...) Parágrafo Único - A ação de investigação de paternidade, realizada sem a prova do pareamento cromossômico (DNA), não faz coisa julgada. Art. 3e Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.»
(in Direitos das Famílias. Lumen Juris: RJ, 2008, pp. 573/576, grifo nosso)
Destarte, por todas essas razões, não deve prevalecer o óbice da coisa julgada formada em outras demandas, envolvendo partes, pedido e causa de pedir diversas, em detrimento do direito fundamental ao conhecimento da identidade genética e da ancestralidade, relativo à personalidade e decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana consagrado na Constituição Federal (art. 1º, III).
Infere-se, portanto, que não há óbice de coisa julgada a inviabilizar o ajuizamento da ação cautelar de antecipação de prova pela pretensa neta contra o suposto avô (exame de pareamento cromossômico - DNA), para a instrução de futura ação de reconhecimento de relação avoenga.
Deve, nesses termos, ser garantido à recorrente o direito à busca da ancestralidade, ainda mais porque, nas lides anteriores ajuizadas por seu pai, não foram esgotados todos os meios possíveis à investigação eficaz da relação de parentesco existente entre o pai da recorrente e seu suposto avô. Há aqui, ainda, a possibilidade de realização de exame de DNA para aferir-se a ancestralidade da ora recorrente.
Portanto, o pedido deve ser considerado juridicamente possível e a parte deve ser tida como legítima para o ajuizamento da ação cautelar de antecipação de prova, bem como deve ser afastado o óbice da coisa julgada, viabilizando-se o curso da ação consubstanciada na realização de exame de DNA, para instrução de ação declaratória de relação avoenga.
Diante do exposto, dá-se provimento ao recurso especial, para, reconhecendo a legitimidade ativa ad causam da ora recorrente e a possibilidade jurídica do pedido, e afastando a ofensa à coisa julgada, determinar o prosseguimento da ação cautelar de antecipação de prova, retornando os autos ao d. Juízo a quo. ...» (Min. Raul Araújo).»

2. A irresignação deve ser conhecida no tocante à eventual violação do art. 472 do CPC, dado o debate desta temática perante as instâncias ordinárias, concluindo-se que a coisa julgada material que envolve o progenitor da ora recorrente acarretaria a esta última a impossibilidade jurídica de seu pedido de investigação de relação avoenga.
Assim, existiu prequestionamento da controvérsia pertinente à existência da coisa julgada e correspondente impossibilidade jurídica do pedido, restando viável o exame do mérito da insurgência.
Efetivamente, a norma do art. 472 do CPC não permite a extensão dos efeitos da coisa julgada a quem não participou da relação processual, sendo incontroverso que a recorrida não integrara as demandas promovidas por seu genitor. Ademais, recente precedente da Suprema Corte afastou a existência de coisa julgada material nos casos em que não era disponível aos litigantes a realização de exame de DNA, permitindo a relativização de sentença de improcedência por ausência de prova, dada a prevalência do direito fundamental à identidade genética em detrimento da segurança jurídica (STF - Informativo 622-STF. RE 363.889/DF. Rel. Min. Dias Toffoli, j. 02.06.2011, acórdão pendente de publicação em 23.11.2011).
Logo, tanto por um, como por outro fundamento, não se poderia reconhecer a existência de coisa julgada em relação ao genitor da ora recorrente, para, a partir dessa premissa, estender seus efeitos à última.
Contudo, aplicando-se o direito à espécie, conforme adiante se explicará, merece ser mantida a conclusão da Corte de origem quanto à impossibilidade jurídica do pedido, acrescentando, ainda, o óbice da ilegitimidade ativa ad causam da neta investigar relação de ascendência avoenga, enquanto em vida o pai, cujo nome limita a ancestralidade em seus registros de nascimento, por ausentes aqueles dos avós paternos (Súmula 456-STF – O Supremo Tribunal Federal, conhecendo do recurso extraordinário julgará a causa, aplicando o direito à espécie).
3. É preciso posicionar a controvérsia em julgamento em relação aos precedentes desta Corte que examinaram temas conexos ao ora em foco.
Para esse fim, destaca-se que o entendimento construído no julgado da Segunda Seção desta Corte, ao apreciar o REsp 807.849/RJ, de relatoria da eminente Ministra Nancy Andrighi, não se constitui em precedente ante o caso em foco, porque:
a) o precedente aludido tratou de ação de investigação de relação avoenga, aforada pelo neto quando seu pai já era falecido, e no presente caso o progenitor da proponente é vivo;
b) o pai do autor da investigação avoenga, não havia, em vida, promovido ação para o reconhecimento do seu parentesco ascendente, e, na hipótese em foco, o genitor da requerente/recorrente já movera quatro demandas antecendentes, todas com trânsito em julgado, nas quais desde a primeira não se reconheceu a filiação;
c) a própria composição da Segunda Seção, quando realizado o julgamento, modificou-se radicalmente, figurando ainda como seus membros apenas três (3) julgadores, dos quais apenas dois (2) votaram no sentido da relatoria, enquanto o outro restou vencido.
De sua vez, o contexto fático da presente insurgência autoriza estabelecer as seguintes premissas lógicas:
a) ainda vivem o pai da requerente e o seu pretenso avô, requerido desta ação;
b) o pai da recorrente já promoveu, em nome próprio, quatro ações voltadas ao reconhecimento de paternidade, ante o aqui acionado, lides julgadas improcedentes, com apreciação do mérito e sentenças trânsitas em julgado, embora não se tenha realizado o exame de DNA;
c) em face disso, suscitando direito próprio, busca a neta realizar exame de DNA, por meio de ação de produção antecipada de prova, com o qual pretende instruir futura ação declaratória de relação de parentesco contra o recorrido/pretenso avô.
Portanto, os tópicos abaixo alinhados, que serão adiante desenvolvidos, buscam aludir à ilegitimidade ativa ad causam e à impossibilidade jurídica do pedido, sintetizando os fundamentos para o reconhecimento de referidas condições da presente cautelar de produção antecipada de provas:
a) o caso concreto se diferencia dos precedentes em que o STJ reconheceu o direito próprio e personalíssimo do neto buscar o reconhecimento de relação avoenga, pois neles o genitor do investigante era pré-morto e não havia exercido demanda de reconhecimento em vida, não existindo julgamentos paradigmas da Corte estabelecendo legitimidade concorrente entre pai vivo e seus descendentes para ajuizar ação investigatória de parentesco contra o pretenso avô, admitida apenas, portanto, a legitimação sucessiva (Distinguishing);
b) não há razoabilidade (ou proporcionalidade), na hipótese em apreço, de conferir caráter absoluto ao direito à identidade genética, para com base nele, afastar a norma restritiva do art. 1.606, do CC, porque o princípio da dignidade da pessoa humana tanto informa o direito individual de buscar a verdade biológica, mediante investigação de sua origem/identidade genética, como também a preservação da intimidade e privacidade nas relações de parentesco das demais pessoas, a observação ao princípio da segurança jurídica e da estabilidade das relações de família;
c) no âmbito das relações de parentesco não decorrentes da adoção, o exercício do direito de investigação da identidade genética, para fins de constituição de parentesco é limitado, sim, pelo disposto no art. 1.606, do Código Civil, o qual restringiu o universo de quem (a geração mais próxima viva) e quando pode ser postulada declaração judicial de filiação (não haver anterior deliberação a respeito);
d) o julgamento de improcedência de demanda investigatória de paternidade proposta pelo legitimado direto (pai da recorrente - geração imediata ao investigado), acarreta a impossibilidade jurídica de outros descendentes mais remotos postularem mesma providência, por incidência do art. 1.606, parágrafo único, do CC combinado com o art. 267, VI, do CPC, ao menos enquanto vivo o legitimado originário, evitando figure o investigado em um sem número de lides, quando a ação proposta pelo pretenso descendente mais próximo determina a verdade da origem biológica e correspondente parentesco, entre todos os descendentes, consistindo esse entendimento providência mais adequada à salvaguarda do núcleo essencial dos direitos fundamentais em tensão, respectivamente, identidade genética de descendentes remotos e privacidade e intimidade do investigado e das próprias gerações mais imediatas;
e) o pai da recorrente ainda detém a possibilidade de relativizar os provimentos jurisdicionais que não o reconheceram como filho do ora recorrido, vez que suas ações restaram improcedentes sem a realização do exame de DNA, e, segundo o entendimento mais recente da Suprema Corte, pode ser reinaugurada essa discussão, exatamente nos casos em que nos julgados de improcedência anteriores não foi efetuado o exame do DNA (Informativo 622 – RE 363.889, Rel. Min. Dias Toffoli, acórdão pendente de publicação- em 23.11.2011).
Passa-se à exposição:
4. Em sede de precedentes do STJ o ineditismo da matéria é evidente, pois todos os casos em que esta Corte analisou a legitimidade de o neto postular o reconhecimento de relação avoenga, o pai desse pretenso descendente era pré-morto, e além disso, jamais ocorrera hipótese em que se admitiu o trâmite de ação investigatória avoenga quando o pai do autor desta aludida lide, por sua vez, já houvera exercido ação própria, contra seu genitor, e pretenso avô do atual acionante, com sentença de mérito pela improcedência da lide já prolatada e transitada em julgado.
Nenhum precedente desta Casa reconhece a legitimidade concorrente entre gerações mais próximas e remotas para postular a constituição de parentesco contra um mesmo investigado, admitindo apenas a legitimidade sucessiva, desde que o ascendente mais próximo do investigante seja pré-falecido.
Esclareça-se que são absolutamente diferentes os precedentes nos quais se admitiu legitimidade própria de o neto postular declaração judicial de relação avoenga, independentemente da iniciativa, em vida, de seu pai, pois naquelas hipóteses alegava-se que o pai dos investigantes, enquanto vivo, nunca vislumbrara a necessidade de demandar em juízo para provar sua condição de filho, vivia e desfrutava desse estado, apenas surgindo esse interesse depois de seu falecimento e do próprio investigado (pretenso avô), isso porque os herdeiros passaram a negar os direitos sucessórios aos pretensos netos.
Assim, é importante reiterar: nos precedentes desta Corte sempre preponderou o signo da pré-morte do pai em todos os casos que se reconheceu aos netos a legitimidade para postular declaração judicial de relação avoenga, ou seja, em nenhuma oportunidade admitiu-se legitimidade concorrente entre gerações de graus diferentes (pais e netos) para requerer a constituição de parentesco, existindo, sim, uma legitimidade sucessiva, em que o direito personalíssimo das gerações mais remotas apenas exsurge após a extinção da geração imediatamente subsequente ao investigado avô, no caso, o pretenso filho, pai da pretensa neta.
Nesse sentido, destaca-se dos julgamentos desta Corte a respeito do tema, o signo sempre presente da pré-morte do pai dos investigantes de relação avoenga:
Segunda Seção. Resp 807.849/RJ. Rel. Mina. Nancy Andrighi. Dje 06.08.2010.- Direito civil. Família. Ação de declaração de relação avoenga. Busca da ancestralidade. Direito personalíssimo dos netos. Dignidade da pessoa humana. Legitimidade ativa e possibilidade jurídica do pedido. (...) - Os netos, assim como os filhos, possuem direito de agir, próprio e personalíssimo, de pleitear declaratória de relação de parentesco em face do avô, ou dos herdeiros se pré-morto aquele, porque o direito ao nome, à identidade e à origem genética estão intimamente ligados ao conceito de dignidade da pessoa humana. Se o pai não propôs ação investigatória quando em vida, a via do processo encontra-se aberta aos seus filhos, a possibilitar o reconhecimento da relação avoenga; (...) O pai, ao falecer sem investigar sua paternidade, deixou a certidão de nascimento de seus descendentes com o espaço destinado ao casal de avós paternos em branco, o que (...) justifica a pretensão de que seja declarada a relação avoenga (...) (grifou-se)
AR 336/RS. Rel. Min. Aldir Passarinho Jr. Revisor: Jorge Scartezzini. DJ 24.04.2006. CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO RESCISÓRIA. CARÊNCIA AFASTADA. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE RELAÇÃO AVOENGA E PETIÇÃO DE HERANÇA. POSSIBILIDADE JURÍDICA. CC DE 1916, ART. 363. (...) II. Legítima a pretensão dos netos em obter, mediante ação declaratória, o reconhecimento de relação avoenga e petição de herança, se já então falecido seu pai, que em vida não vindicara a investigação sobre a sua origem paterna.
Terceira Turma - AgRg no Ag.1319333/MG - Min. Della Giustina. Dje 14.02.2011: AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DE FAMÍLIA. RELAÇÃO AVOENGA. RECONHECIMENTO JUDICIAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. LEGITIMIDADE ATIVA DOS NETOS. PAI JÁ FALECIDO. RECURSO DESPROVIDO. (...) 3. A Segunda Seção desta Corte Superior consagrou o entendimento de que é juridicamente possível e legítima a ação ajuizada pelos netos, em face do suposto avô, com a pretensão de que seja declarada relação avoenga, se já falecido o pai dos primeiros, que em vida não pleiteou a investigação de sua origem paterna.
Terceira Turma - Resp 604.154/RS. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 01.07.2005; Resp 603.885/RS. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. DJ 11.04.2005; e Resp 269/RS. Rel. Min. Waldemar Zveiter. DJ 07.05.1990, nos quais os votos vencedores enfatizam que o pai dos proponentes da demanda, os pretensos netos, ajuizaram a demanda quando seu genitor já era morto.
Logo, em reforço ao item n.1, sublinha-se a inexistência de paradigma jurisprudencial apto a orientar o presente julgamento, ante seus aspectos particulares e específicos: (a) investigação avoenga com pai vivo; (b) trânsito em julgado com exame de mérito, de lide entre o pai e o avô da proponente, afastando a relação de paternidade entre aqueles dois. ...» (Min. Marco Buzzi).»

5. O direito à identidade genética deve ser interpretado harmonicamente com aquele de filiação, assegurando-se a salvaguarda de seus núcleos essenciais.
No presente caso, o lastro da demanda é o direito fundamental e personalíssimo de pretensa neta investigar sua identidade genética, autorizando a postulação da realização de exame de DNA para ulteriormente se valer dessa prova no bojo de ação dirigida à constituição de relação de parentesco (avoenga).
É imperioso esclarecer que o direito de buscar a identidade genética não acarreta, necessariamente, uma relação de parentesco, valendo registrar, a título de exceções: (a) adoção; (b) fecundação heteróloga; e, (c) paternidade socioafetiva.
A única regulamentação específica desse direito encontra-se no art. 48, da Lei 8.069/90, segundo o qual a pessoa adotada pode ter acesso às informações de ascendência biológica, sem que isso implique na desconstituição do parentesco civil estabelecido com seus adotantes.
Não obstante a ausência de maior regulamentação, quando a pessoa não possui registro de ascendência em sua certidão de nascimento, o reconhecimento do vínculo biológico implica, no caso sub judice, confessadamente, na constituição de parentesco, com repercussão na sucessão patrimonial, sendo este o caso dos autos, na medida em que a recorrente e seu genitor não possuem registro atinente ao seu pretenso avô e pai, respectivamente, sendo que a investigante indica expressamente na inicial da produção antecipada de provas, que irá propor ação de investigação avoenga, não sendo meta apenas conhecer a sua origem biológica.
Nessa conjuntura, a questão controvertida que deve ser solucionada é se o art. 1.606 do CC e art. 27, da Lei 8.069/90, ao regularem o direito de filiação, restringindo-o em relação a quem e quando se pode buscar seu reconhecimento, implicaria em uma limitação desproporcional ao direito à identidade biológica, a ensejar uma flexibilização de sua interpretação, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, tal como proposto pelo voto do eminente Relator originário.
Consta do art. 1.606 do CC:
A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz
Parágrafo único - Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo.(grifou-se)
No mesmo rumo, o disposto no art. 27, da Lei 8.069/90, que prescreve:
«O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça». (grifou-se).
Mais um vez, necessário introduzir a argumentação com uma distinção. Nos primeiros precedentes que reconheceram a legitimidade própria dos netos postularem a declaração judicial de relação avoenga, esta Corte considerou uma situação deveras peculiar para fixar esse entendimento: o filho do investigado (pai dos pretensos netos), jamais teve interesse em promover a investigação de paternidade em vida, vez que já titularizava a posse de estado de filho, surgindo a necessidade de estabelecer formalmente aquele estado, mas apenas após a morte do progenitor dos pretensos netos.
Isso é, não era proporcionalmente legítimo que os filhos daquela pessoa que durante toda a sua vida sempre gozou de uma aparente relação de filiação (posse de estado de filho), ficassem ao desabrigo de direitos sucessórios ante o só fato de seu pai não ter, em vida, manejado ação judicial voltada ao reconhecimento de uma situação de estado já titularizada no mundo dos fatos, mas não formalmente estabelecida no plano jurídico.
Recentemente, o precedente da Segunda Seção já citado, avançou no exame da matéria, constando do voto condutor que o direito ao reconhecimento da ancestralidade seria personalíssimo e de titularidade dos próprios netos, ressalvando-se em duas oportunidades, na própria ementa do julgado, o fato de o pai dos investigantes ser falecido e não ter demandado em vida, daí advindo um vácuo no tronco familiar dos netos a ensejar ação própria voltada ao reconhecimento de sua ascendência e correspondente parentesco.
Portanto, nos precedentes mais remotos e naqueles mais recentes, existiam especificidades que ensejaram o elastério da legitimidade em favor dos netos, flexibilizando a norma do art. 1.606 do CC (na época do julgamento tratava-se dos artigos. 350 e 351 CC de 1916), mas em todos os casos era pré-morto o genitor direto dos proponentes da investigação avoenga.
De sua vez, na situação enfrentada no presente recurso, não cabe uma proporcional relativização da norma do art. 1.606, do CC, pois ausente razoabilidade para tanto, vez que o regramento do direito de parentalidade atribui à geração mais próxima, viva, legitimidade exclusiva para postular essa declaração judicial, afastando expressamente aquelas mais remotas (legitimidade sucessiva), vedadas, pois, em casos tais, a possibilidade jurídica e a legitimatio ad causam de o herdeiro mais remoto propor demanda voltada ao reconhecimento da sua ancestralidade (avoenga), com a agravante, na hipótese, da existência de provimento jurisdicional de mérito, transitado em julgado, ditando a inexistência de parentesco entre o pai da investigante e o pretenso ancestral comum, o avô, agora mais uma vez acionado, em razão de fracassadas tentativas de reconhecimento de paternidade promovidas pelo genitor da autora contra o ora investigado.
No caso em exame é exatamente o princípio da proporcionalidade que não autoriza conferir um caráter absoluto ao direito de identidade genética para, com base nele, afastar a norma restritiva do art. 1.606, do CC, tendo em vista que o valor/princípio da dignidade da pessoa humana informa tanto o direito do indivíduo buscar sua verdade biológica, como também a segurança jurídica e a privacidade da intimidade nas relações de parentesco do investigado, exceto venha o legislador futuramente regular o tema de forma diferente.
Como já enfatizado, segundo o sistema infraconstitucional vigente, apenas o art. 48 da Lei 8.069/90 estabelece o direito da pessoa adotada conhecer sua origem biológica, diferenciando o direito de identidade genética daquele de filiação.
Dessa forma, no âmbito das relações de parentesco não decorrentes da adoção, o exercício do direito de investigação da identidade genética para fins de constituição de parentesco é limitado pelo disposto no art. 1.606 do Código Civil, o qual restringiu o universo de quem (a geração mais próxima viva) e quando se pode postular a declaração judicial de filiação (inexistindo anterior processo em que já se deliberou a esse respeito, especialmente com exame de mérito).
Apenas uma flagrante ausência de razoabilidade dessa otimização legal ensejaria o afastamento da norma ou sua interpretação de forma mais larga, a permitir que quaisquer descendentes vivos, próximos ou remotos, uns independentemente dos outros, pudessem ajuizar autonomamente demandas voltadas ao reconhecimento de relação de parentesco.
Isso porque o direito de toda pessoa humana investigar sua identidade genética não deixa de ser salvaguardado em relação aos descendentes de uma geração mais próxima quando, para fins de constituição de parentesco, apenas a classe de grau mais imediato seja legitimada exclusiva para buscar essa verdade biológica de sua ascendência, vez que todo o tronco familiar derivado de um ascendente comum deve com ele partilhar o mesmo estado de origem biológica a título de parentalidade, sem prejuízo de que cada individuo investigue sua origem genética para fins de conhecimento próprio, à vista de sua saúde ou situação peculiar que enseja essa pretensão, o que, efetivamente, não é a situação ora em julgamento.
Não há base, sequer constitucional, para que existam duas verdades a respeito do parentesco de pessoas que pertencem a idêntico tronco familiar. Em outras palavras, se um determinado sujeito A é reconhecido judicialmente como não ascendente de B, os filhos deste último não podem ser netos do primeiro, mesmo que, por meio de exame informal de DNA se constate que geneticamente os últimos sejam descendentes do primeiro, justo que o parentesco das gerações mais próximas vincula a parentalidade dos mais remotos, ou seja, uma relação avoenga necessariamente deve derivar de uma relação de paternidade entre o pai e avô da pretensa neta.
De outro vértice, a tão-só existência de sentença de mérito, transitada em julgado, não reconhecendo a paternidade do pai da ora autora em relação ao investigado, por ausência de provas, ante a não realização do exame de DNA, ao menos no presente caso, igualmente não justifica alargar o rol dos legitimados para a propositura da ação de investigação de ancestralidade do art. 1.606 do CC, vez que, conforme decisão do Suprema Corte (STF), em sede de recurso com repercussão geral (Informativo 622 – RE 363.889, Rel. Min. Dias Toffoli, acórdão pendente de publicação- em 23.11.2011), o surgimento de novos meios técnico-científicos de provas, antes inexistentes ou indisponíveis às partes, e que são reputados de absoluta segurança, admite que o pai da autora ajuíze nova demanda voltada a discussão do mesmo tema.
Por esse prisma, a não flexibilização do art. 1.606, CC, constitui entendimento mais adequado à salvaguarda do núcleo essencial dos direitos fundamentais em tensão, respectivamente, identidade genética de descendentes remotos e a privacidade e intimidade do investigado e das próprias gerações de classe mais imediata, além da segurança jurídica que envolve as relações de família e respectivo regime de parentesco, evitando-se o risco de sentenças contraditórias e transtornos irreversíveis ante o aforamento de múltiplas ações judiciais para o mesmo fim, por parte de um número muito maior de legitimados, então concorrentes.
A rigor, pois, a concentração da legitimidade da investigação da identidade genética de determinado tronco familiar na geração mais próxima, enquanto viva, tal qual regulado presentemente no art. 1.606 do CC, representa o mecanismo menos traumático à privacidade do investigado, segurança jurídica das relações de família, assegurando-se, ainda que de forma restritiva, o núcleo essencial do direito fundamental à busca da ancestralidade de qualquer ser humano.
Assim não fosse, restaria pouco razoável obrigar qualquer indivíduo vir a juízo revelar sua intimidade e expor sua vida privada para se defender de demanda dirigida ao reconhecimento de parentesco, como já dito, com consequências sócio familiares irreversíveis, não só apenas em relação a um determinado pretenso filho, mas também, de todos os descendentes desse alegado parente de grau mais próximo, sujeitando-se a um sem número de demandas, com possibilidade de decisões incongruentes, presentes e futuras, nas quais um mesmo tronco de descendência, cada qual por si, poderia postular declaração judicial de parentalidade lastrado em um idêntico vínculo genético.
Não se pode olvidar a existência de um provimento jurisdicional reconhecendo que o pai da recorrente/investigante não é filho do investigado, ainda que por falta de provas e de três outros subsequentes, negando-lhe o direito de relativizar essa primeira deliberação, sendo inviável, enquanto em vida o progenitor da ora demandante, admitir que uma geração mais remota desconstitua aquela norma jurídica do caso concreto, decorrente da autoridade da coisa julgada, sob o fundamento de buscar um direito próprio de personalidade, concernente à sua identidade genética, quando seu verdadeiro objetivo é estabelecer uma relação de parentesco de 2º grau com o investigado, infirmando, de forma oblíqua, a verdade legal a respeito do parentesco do pai da investigante e o presentemente investigado.
Logo, não há razão que justifique, ao menos na situação controvertida em julgamento, atribuir supremacia de razoabilidade ou proporcionalidade ao direito da proponente apurar sua origem genética para fins de reconhecimento formal de ascendência, quando há no sistema jurídico vigente regra instituindo para tanto ordem sucessiva de legitimação ativa, estando vivo o pai da autora, tendo ele movido várias ações contra o mesmo pretenso ascendente comum, já existindo sentença examinando o mérito do pedido, transitada em julgado, negando a descendência.
Por tudo isso, com todas as vênias, ante esse confronto de evidências, ao menos no caso em mira, não há porque relativizar a ordem imposta pelo art. 1.606 do CC, quando esta regula a legitimidade e a possibilidade jurídica de pedido atinente ao reconhecimento de parentesco, conforme adiante ainda mais se justifica. ...» (Min. Marco Buzzi).»

6. Da ilegitimidade ativa de neta, enquanto vivo seu pai, para deflagrar ação de investigação avoenga e da falta de razoabilidade, nessa hipótese, de fazer preponderar os consectários da verdade biológica em detrimento das limitações advindas do regime de normas do estado de filiação.
Diferentemente das hipóteses enfrentadas na Corte, no caso em apreço, o pretenso filho do ora acionado/recorrido permanece vivo e já deflagrou demanda buscando o reconhecimento da paternidade, e restou nela derrotado e em mais três outras contendas sucessivas, havendo coisa julgada material ao menos em relação a ele, existindo, pois, declaração judicial de que não é filho do aqui recorrido.
A despeito disso tudo, a recorrente deduziu demanda preparatória voltada à produção de prova pericial de DNA, com a qual pretende futuramente instruir ação dirigida ao reconhecimento de relação avoenga.
A autora não está buscando apenas um puro direito de identidade genética, mas também o de parentalidade, tanto que a ação não é unicamente voltada à coleta de exame de DNA, a partir do qual já se permitiria inferir a verdade biológica da origem da recorrente, mas a demanda é, sim, preparatória de futura demanda investigatória, na qual se postulará direitos decorrentes do fato de ser descendente do investigado.
Nesse panorama, estando o pai da recorrente ainda vivo, não há como afastar o caso concreto do âmbito de abrangência do aludido art. 1.606, «caput» do CC, segundo o qual: «A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz». (grifou-se), bem como o disposto no art. 27, da Lei 8.069/90, que prescreve: «O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça». (grifou-se).
Há apenas legitimidade sucessiva para gerações de grau de proximidade diferentes postularem o reconhecimento de parentesco, vez que os mais próximos afastam os mais remotos, enquanto vivos.
De outro vértice, admitida a concorrência de legitimidades entre os variados graus de descendentes, pode-se chegar à situação esdrúxula de que haja avô cujo neto descenda de pessoa que não esteja reconhecida como filho do primeiro, fragilizando o sistema do Código Civil relativo ao parentesco.
Além disso, a concorrência de legitimidades também potencializaria que os netos, ou mesmo um deles, sem o consentimento ou contrariamente à vontade do pai, ou de todos os outros integrantes de sua mesma classe de parentesco, deflagresse(m) ação diretamente contra o avô, ensejando, assim, a intranquilidade e a discórdia no seio da entidade familiar e social, sem se falar na celeuma criada ante os registros públicos e a possibilidade de sentenças cujas deliberações sejam conflitantes.
Não é diferente o entendimento quase unânime da doutrina a respeito do tema, valendo pinçar sobre a legitimidade exclusiva do filho, consagrada no art. 1.606 do CC, as seguintes lições doutrinárias:
O exercício da ação, ou a legitimidade ad causam, constitui direito personalíssimo do filho, que não pode ser substituído por quem quer que seja. Significa dizer que não se pode, mediante ação judicial, atribuir compulsoriamente a paternidade ao filho contra sua vontade. (...) Os herdeiros não têm direito de iniciativa da ação. Seu direito é derivado, no sentido de apenas prosseguirem na ação iniciada pelo titular, salvo se não tiver sido extinta por qualquer dos motivos da legislação processual. São herdeiros os que integram a ordem de vocação hereditária, a saber, os descedentes, os ascendentes, o cônjuge e os parentes colaterais até o quarto grau (...). A qualificação de herdeiro não pode dispender a ordem em que se enquadram, isto é, os parentes mais remotos apenas podem exercer o direito se faltarem os mais próximos, em cada linha (grifou-se) (LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 235-236 – valendo ressaltar que o autor adverte que o art. 1.606 do CC, sequer diria respeito à investigação de paternidade, que por ele seria demanda distinta daquela voltada à prova de filiação, onde o investigante já titulariza uma situação de fato, caracterizadora de uma posse de estado de filho).
A ação de investigação cabe, em princípio, exclusivamente ao filho. Se ele preferir não demandar o genitor ou genitora, está no seu direito. Os descendentes e demais parentes sucessíveis do filho, a despeito do interesse indireto no reconhecimento, não estão legitimados para a ação (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil. Família – sucessões. 2. ed. Vol. 5. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 174);
No mesmo sentido:
Por envolver direitos da personalidade, dos quais uma das características é ser personalíssimo, a transmissão do direito é excepcional, admitida apenas se a morte do interessado ocorrer quando for menor ou incapaz. Se maior e capaz é o interessado o único titular do direito, o único que poderá julgar da conveniência e oportunidade de propor ação de prova de filiação cuja finalidade é constituir a paternidade. Se o titular do direito tem paternidade socioafetiva constituída a seu conteto, com o reconhecimento do pleno alcance de seus objetivos, e, por isso, decidiu não desconstituí-la visando a constituição da paternidade biológica, os herdeiros não têm legitimidade para propor ação post mortem do interessado (CHINELATO, Silmara Juny. Comentários ao Código Civil. Parte Especial: do direito de família. Arts. 1591 a 1.710. Vol. 18. São Paulo: Saraiva: 2004, pp. 84-85).
A ação de investigação de paternidade é privativa do filho (...) O caráter personalíssimo do reconhecimento judicial é afirmado pelo art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente (...) Iniciada, porém, a ação pelo filho natural, e morto ele pendente lite, seus herdeiros podem com ela prosseguir, habilitando-se no respectivo processo, na forma prevista na lei processual e nos termos do art. 1.606 e parágrafo único do Código Civil de 2002 (Ressalva deste signatário: há expressa ressalvada nos precedentes desta Corte admitindo a legitimidade própria dos netos, bem como em autores estrangeiros reconhecendo uma extensão da personalidade jurídica para além da morte, admitindo-se o prosseguimento de ação de investigação de paternidade já iniciadas pelo pretenso pai da investigante) (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. Atualizada por Lucia Maria Teixeira Ferreira. 6. ed. Rio de Janeiro: Decálogo, 2006, pp.70/116-117/120).
A ação tendente a obter reconhecimento da filiação compete ao filho, por ser direito personalíssimo, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz (Cód. Civil de 2002, art. 1.606). Morto, porém, o filho, desde que a ação tenha sido por ele iniciada, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo (Cód. Civil, art. 1.606, parágrafo único (MONTEIRO, Washington de Barros; SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Curso de direito civil. Direito de Família. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.439).
A legitimidade ativa para o ajuizamento da ação de investigação de paternidade é do filho. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, por isso, a ação é privativa dele. (...) Em virtude do caráter personalíssimo da ação, em princípio nem aos netos se reconhece o direito de promovê-la, em caso de os pais falecerem sem ter tomado a iniciativa de investigar a sua ascendência biológica (observa-se, expressa ressalva do autor, a respeito do entendimento desta Corte conferindo legitimidade própria aos netos, sem contudo, perfilhar esse entendimento) (GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 8. ed. 6 vol. São Paulo: Saraiva, pp. 351/353-355).
Qualquer que seja a situação da filiação, o filho terá legitimidade para buscar sua certeza, por via judicial (art. 1.606). Da mesma forma, repete-se a regra de que, se a ação foi iniciada pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo (art. 1.606, parágrafo único) (...) a legitimação para essa ação personalíssima é do filho. (...) se o indigitado filho morreu capaz, sem propor a referida ação, ninguém mais poderá fazê-lo (...) Se o filho tiver iniciado a ação, falecendo ele em seu curso poderão os herdeiros continuá-la, se não tiver sido julgado extinto o processo (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 6. ed. Vol. 6. São Paulo: Editora Atlas, 2006, pp. 249-250).
Diante dessa conjuntura legal e doutrinária, não parece haver dúvida que as relações de parentesco estabelecidas no Código Civil são escalonadas e lineares (CC, arts. 1591/1594), inexistindo regulamentação legislativa para o reconhecimento de filiações interpostas (per saltum), em que ancestrais possam ser reconhecidos parentes de descendentes mais remotos, por conta da verdade biológica, sem que os mais próximos o desejem ou postulem essa pretensão, ou mesmo, como no caso, quando já existe um provimento jurisdicional ditando que o pai da recorrente não é filho do recorrido/investigado.
Apenas uma pode ser a conclusão: a parentalidade dos ascendentes/descendentes imediatos vincula as gerações mais remotas, assegurando-se unidade e prevenindo conflitos em relações familiares que justamente devem ser marcadas pelos signos da paz, tranquilidade e segurança.
Logo, por expressa disposição legal – CC, art. 1.606, «caput», a legitimação para investigação de relação avoenga é sucessiva e não concorrente. Enquanto vivo o pretenso descendente imediato e mais próximo do investigado, os demais, de gerações mais remotas, não detém legitimidade de postular o reconhecimento de parentesco, ou mesmo, no presente caso, de constituir prova para o fim de instruir demanda voltada, ainda que indiretamente, à relativização da coisa julgada em que se reconheceu a inexistência de parentesco entre o ora investigado/recorrido e o pai da recorrente.
Gize-se, que essa exegese não pretende esvaziar ou vedar o direito de toda pessoa conhecer a sua origem genética, inerente ao valor fundamental da dignidade da pessoa humana e direito à identidade (CRFB/art. 1º, III; art. 5º, X; CC, arts. 16/17; Lei 8.069/90, art. 48).
Mas, é prudente frisar, esta demanda visa à produção antecipada de prova para ulterior constituição de parentesco consanguíneo, lastrado em descendência biológica e correspondente obtenção dos direitos materiais inerentes à condição de neta biológica, não almejada a simples busca da identidade genética por questão de saúde, ou coisa que o valha (por analogia, Lei 8.069/90, art. 48), situação em que a norma do art. 1.606 do CC poderia ceder para permitir que os netos demandem o avô, enquanto ainda em vida o pai dos últimos, restringindo a pretensão à obtenção da verdade genética (aliás, sequer aplicável a norma referida no caso desta modalidade de pretensão) (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao Estado de Filiação e Direito à Origem Genética: uma distinção necessária. In: FARIAS, Cristiano Chaves (Coor). Temas atuais de direito e processo de família. Primeira série. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp.340-341; SÁ, Maria de Fátima; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Filiação e biotecnologia. Belo Horizonte: Mandamentos, 2005, p.64; VILLELA, João Baptista. O modelo constitucional da filiação: verdades e superstições. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 1, n.1, abr/jun, 1999, p. 141).
Há, então, uma concorrência de igual hierarquia constitucional entre o direito de identidade genética e as normas do direito de filiação, com a agravante de que o último se encontra exaustivamente regulamentado, enquanto que o primeiro, ao menos por ora, é reconhecido por doutrina e jurisprudência, porém carente de definição de seus contornos precisos, uma vez existente apenas um dispositivo legal que o consagra, especificamente, o art. 48, do Estatuto da Criança e do Adolescente, restringindo-se aos casos de adoção.
E nem se fale em necessidade de protagonismo judicial, pois o legislador, legitimado para tanto pelo eleitor, na recém reforma do Código Civil, não pretendeu modificar essa escala sucessiva de legitimação para o exercício do direito ora em foco.
Com efeito, o direito à identidade genética não pode deter irrestrita autonomia, ou mesmo, absoluta aplicação, para derruir a estrutura normativa do estado de filiação, valendo destacar que, acaso o legislador venha algum dia a positivar no direito ordinário a tutela da verdade biológica, deverá fazê-lo de modo harmônico com o que está estatuído em relação ao regime de parentesco, pois, insiste-se, ambos detém mesma fonte constitucional, encontrando-se em igual hierarquia, motivo pelo qual devem conviver e não se sobrepor.
Afastar as normas atinentes ao estado de filiação em vigor, para que prevaleça o direito à identidade genética, sequer regulado infraconstitucionalmente, indispensável seria que a norma prevista no Código Civil, que restringe a legitimidade para ajuizamento da ação de investigação de relação de parentesco, fosse alterada pelo legislador ou desprovida de razoabilidade ou proporcionalidade.
Não é o que ocorre, entretanto.
Com efeito, a limitação da legitimidade para postulação de reconhecimento de parentesto, positivada no art. 1.606 do Código Civil, é plenamente adequada, observado o vetor interpretativo derivado do princípio constitucional da razoabilidade, o qual permite a ponderação entre direitos fundamentais sob tensão, quando exista concorrência aparentemente colidente com outros de igual porte (direito de identidade genética x direito de filiação).
A uma, porque a iniciativa isolada da neta, com descendência mais remota, não pode interferir ou modificar a situação jurídica de seu ascendente direto, enquanto este se encontra vivo, pois não há dúvida de que o reconhecimento de uma relação de parentesco em favor de um parente de 2º grau, implica, necessariamente, no reconhecimento dessa mesma relação de estado com a classe de 1º grau que a antecede, o que pode significar constrangimento ou violação ao direito de intimidade do último.
É dizer, pode-se afirmar com absoluta certeza, atualmente, que o pai da ora recorrente não se tenha conformado e aceitado o resultado de improcedência das múltiplas ações que ajuizou? Seria lícito, então, que sua filha o forçasse a, embora indiretamente, voltar a uma discussão judicial sobre seu estado de filiação? Mesmo que aqui se admita indícios de que o genitor da recorrente evidenciava esse interesse no passado, dado o ajuizamento de quatro (4) demandas voltadas a esse desiderato, não há como presumir que ainda persista essa intenção, dada a total ausência de informação a respeito de seu real interesse em presentemente constituir aludido parentesco.
E, mais, admitida a concorrência de legitimidades, estariam os netos, bisnetos, tataranetos livres para, sem consentimento ou contrariamente à vontade de seus pais, devassar a vida íntima destes, expondo-os a um sem número de controvérsias judiciais, dada a legitimidade autônoma de cada qual, o que, por consequência, implica no ônus do investigado também necessitar vir a Juízo para responder a cada uma dessas pretensões, discutindo sua intimidade, com sérios reflexos em sua vida privada, dada invariável repercussão que uma discussão judicial de questões familiares implica nas relações pessoais do investigado.
Vislumbra-se a possibilidade do exercício, sim, da pretensão de busca da identidade genética, independentemente da iniciativa das gerações mais próximas, enquanto ainda vivas, quando esse desiderato não estiver vinculado ao propósito de declarar e reconhecer o parentesco, apenas admitida tal hipótese para alcançar-se o conhecimento da verdade biológica, consoante interpretação analógica do art. 48, da Lei 8.069/90, ante a necessidade absoluta de adotar medidas preventivas para a preservação da saúde e, a fortiori, da vida, e elucidar impedimentos matrimoniais, ou mesmo biológicos.
Esse direito – da pura busca da identidade genética de cada indivíduo - não almeja relação de família para ser tutelado, porque não vindica reconhecimento de parentesco, nada obstando seu exercício para apurar a descendência biológica, lastradas, aquelas pretensões, no princípio da dignidade humana e em fatores de saúde, sem fins sequer declaratórios (Lobo, Paulo Luiz Netto. Direito ao Estado de Filiação e Direito à Origem Genética: Uma Distinção Necessária. In: FARIAS, Cristiano Chaves (Coord). Temas Atuais de Direito e Processo de Família. Primeira Série. Rio de Janeiro: Lúmen júris, 2004, pp.340-341).
Ocorre que esse não é o caso dos autos, pois a exordial do procedimento cautelar vinculou a pretensão de produção antecipada de prova a posterior demanda principal voltada à constituição de parentesco.
Logo, não há como sequer admitir que o Tribunal a quo agiu em error in procedendo quando reconheceu a impossibilidade jurídica do pedido, sem oportunizar à requerente a emenda da petição inicial, a fim de adequar sua pretensão ao simples conhecimento de sua ascendência biológica, sem interesse ulterior à constituição de parentesco.
Isso porque, quando a promovente da medida assecuratória indica a ação principal que almeja instruir com a prova antecipada, necessariamente vincula a utilidade de sua produção à lide subordinante, direcionando o exercício do direito de defesa do requerido, conforme a ação principal que será ajuizada.
Assim, inexistindo indícios de que a recorrente pudesse tão-somente desejar conhecer sua ascendência genética, não havia justa causa para que o Juízo singular facultasse uma emenda da exordial, mormente quando todos os arrazoados recursais em que a insurgente hostilizou a extinção liminar do processo, sempre aludiu ao direito de realizar o exame de DNA com a finalidade precípua de constituir uma relação de parentesco com o investigado.
Dessa forma, sendo a recorrente parte ilegítima para a demanda subordinante, - investigação de relação avoenga enquanto seu pai ainda vive - , também não titulariza essa mesma legitimidade para a cautelar acessória de produção antecipada de prova.
A duas, ainda que se entenda beneficie à recorrente a lógica fundada no princípio da proporcionalidade, não há descurar que também o ascendente mais remoto (investigado) merece proteção jurídica, mormente quando já se logrou vencedor em quatro ações anteriores a respeito de semelhante litígio.
A respeito do caráter não absoluto do direito à identidade genética, colho da doutrina lição pertinente:
O direito ao conhecimento das origens genéticas pode ainda ser convocado com o sentido de garantir o direito de todo indivíduo à obtenção junto dos respectivos progenitores da informação genética indispensável para efeitos de cuidados de saúde.
O conteúdo desse direito deve ainda fundamentar um princípio geral de admissibilidade de recurso à via judicial com a finalidade de obtenção de informação necessária à identificação dos progenitores biológicos, reconhecendo-se a legitimidade de utilização de uma 'acção de informação pessoal' que permita a sua efectivação.
Porém, convém ter presente que, não sendo o direito ao conhecimento das origens genéticas um direito absoluto, deve admitir-se o confronto de cada uma das respectivas dimensões com outros interesses ou valores conflituantes, impondo-se a consideração de intervenções legislativas destinadas a restringi-lo ou a harmonizá-lo com esses outros interesses ou valores. Uma vez que, nesse conflito, a situação mais plausível será encontrar direitos fundamentais de realização hetero-excludente (pense-se no confronto entre o direito ao conhecimento das origens genéticas e um concorrente direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar), com grande probabilidade, uma intervenção legislativa com intenção harmonizadora traduzir-se-á, no momento da sua aplicação, numa solução restritiva de um dos direitos em conflito, pelo que também nesses casos terão que ser proactivamente observadas as regras constitucionalmente reguladoras das restrições legais em matéria de direitos fundamentais (grifou-se) (REIS, Rafael Vale e. O direito ao conhecimento das origens genéticas, o estabelecimento da filiação e a solução do anonimato do dador – o caso português. In: ALVIM, Arruda; ALVIM, Angélica Arruda. Revista autônoma de direito privado. Curitiba: Juruá Editora, 2008, p.237).
Em suma, na ponderação entre direitos constitucionais de igual hierarquia (estado de filiação e direito à identidade genética), tem-se que, neste caso concreto, deve prevalecer o regulamentado pelo legislador ordinário, pois não há razoabilidade em se admitir a quebra da norma prevista no art. 1.606 do Código Civil, quando ainda vivo descendente de grau mais próximo ao investigado, especialmente porque, o pai da recorrente, a qualquer tempo, pode inaugurar discussão judicial a respeito da efetiva existência da relação de parentesco e relativizar a coisa julgada até então existente contra ele.
Nem se diga aqui que o fato de a ação anterior proposta pelo pai da recorrente, por ter sido julgada improcedente sem realização de exame de DNA, configuraria situação excepcional a ensejar a admissão da quebra da regra expressa do art. 1.606 do Código Civil.
Remanesce, ainda, ao pai da recorrente – pretenso descendente imediato do investigado - buscar as medidas judiciais cabíveis para flexibilizar aquele primeiro julgado, mormente em vista do mais recente posicionamento do STF sobre o assunto (Informativo nº 622-RE 363.889, Rel. Min. Dias Toffoli, acórdão pendente de publicação em 23.11.2011), que admitiu exatamente a relativização de coisa julgada firmada nos parâmetros aqui discutidos.
Por tudo isso, há de se aplicar o art. 1.606 do CC ao caso concreto, reconhecendo a ilegitimidade ativa da neta para ajuizar ação de produção antecipada de provas em detrimento de seu avô, por se encontrar vivo o único a quem a lei autoriza deflagrar essa demanda, ausente legitimação concorrente entre as classes diferentes de descendentes, mas sim apenas sucessiva e a partir da extinção da geração mais próxima do investigado. ...» (Min. Marco Buzzi).»


7. Da impossibilidade jurídica do pedido, dada a existência de provimento de improcedência não reconhecendo o pai da investigante como filho do ora investigado.
O pedido, ademais, também é juridicamente impossível, havendo, sim, expressa proibição legal à sua dedução, conforme se retira do art. 1.606, parágrafo único do CC.
O dispositivo veda a propositura de nova demanda, ou a sua continuidade, voltada ao reconhecimento de filiação/parentesco, quando já houver sido extinto o processo anterior, especialmente com julgamento de improcedência e transitada em julgado, pois haverá de colher a todos os demais interessados descendentes diretos do investigante sucumbente de modo uniforme, vez que as relações de parentesco mais remotas derivam das mais próximas.
Com efeito, existindo julgamento de improcedência a respeito da relação de parentesco entre o pai da ora recorrente (investigante de relação avoenga) e o pretenso investigado, incide a parte final da norma do parágrafo único do art. 1.606 do CC, segundo à qual: «Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo». (grifou-se).
O só fato das demandas ajuizadas pelo pai da recorrente terem sido julgadas improcedentes, sem prova cabal da inexistência de descendência biológica, não afastam a aplicação do dispositivo, pois os descendentes mais remotos não estão autorizados a promover ação própria voltada ao reconhecimento do parentesco quando, em anterior processo, ascendente imediato e integrante de geração mais próxima restou reconhecido como não parente do investigado.
A rigor, cumprirá ao pai da ora recorrente (pretensa neta/recorrente) promover a relativização da coisa julgada até hoje existente, doravante ancorado no último entendimento do augusto STF a respeito da matéria, ou mesmo, acaso venha a falecer, aos seus descendentes imediatos, por conta de legitimação sucessiva.
Sobre o tema, consigna-se da doutrina:
O parágrafo único moderniza a linguagem processual, mas ainda assim poderia ser mais completo, pois não diferencia quais hipóteses de extinção do processo sem julgamento de mérito que impedem a continuidade da ação pelos herdeiros. O Código de 1916 previa apenas dois casos para que a ação pudesse ser continuada pelos herdeiros, quando iniciada pelo filho: não ter havido desistência da ação ou perempção de instância.
O Código atual admite a continuidade da ação pelos herdeiros, com hipóteses aparentemente mais amplas para excepcionar essa possibilidade.
Parece-me que essa continuidade é vedada se houver extinção com julgamento de mérito, nos termos do art. 269 do Código de Processo Civil, operando-se a coisa julgada; anota-se não se aplicarem os incisos III e V, que versam sobre transação e renúncia, por se tratar de direitos indisponíveis (grifou-se) (CHINELATO, Silmara Juny. Comentários ao Código Civil. Parte Especial: do direito de família. Arts. 1591 a 1.710. Vol. 18. São Paulo: Saraiva: 2004, p.85).
É bem verdade que a doutrina colacionada trata do fenômeno da coisa julgada, o qual se restringe às partes do processo em que discutiu a relação de parentesco atinente à paternidade. Contudo, a interpretação lógica do dispositivo implica no reconhecimento de impossibilidade jurídica dos descendentes do investigante sucumbente promoverem idêntica pretensão contra o investigado, fragilizando um sistema originalmente construído para salvaguardar a segurança jurídica nas relações de família.
Este argumento é pertinente e verdadeiro a ponto de o próprio eminente Ministro Raul Araújo, relator originário, durante os debates, admitir que, acaso houvesse um julgamento de improcedência lastrado em prova conclusiva – exame de DNA, então sim a situação seria diferente, pois haveria uma declaração judicial de «que fulano não é filho». (nota taquigráfica – fl.129), o que, por dedução consequencial implicaria em óbice a que seus descendentes (do não filho) pudessem ajuizar demanda própria voltada à desconstituição desse provimento jurisdicional.
Segundo essa rota de argumentação, há vedação aos descendentes formularem pedido para desconstituir anterior provimento jurisdicional no qual, com base em exame de DNA, não se reconheceu o pai dos investigantes como filho de determinado investigado (ou se afirmou o parentesco), de modo que também será inviável admitir que essas mesmas gerações mais remotas possam vir a Juízo postular a desconsideração de sentença na qual igualmente não se constituiu uma determinada paternidade, ainda que por falta de provas.
A ausência de prova consistente em exame de DNA simplesmente autoriza o próprio prejudicado, pela improcedência, relativizar o julgado que é contrário a seu interesse, e, a partir de sua morte, seus herdeiros requererem essa providência, existindo expressa vedação legal a outros descendentes o fazerem quando há um provimento jurisdicional de improcedência (CC, art. 1606, § único).
Frente a esse contexto fático peculiar, existe razão suficiente para um tratamento diferenciado da questão pertinente à possibilidade jurídica do pedido de neta (descendente mais remota) postular o reconhecimento de relação de parentesco com base na verdade genética, quando já exista provimento jurisdicional declarando a inexistência desse vínculo entre seu pai e o investigado, ainda que por insuficiência de provas, não servindo como paradigmas os precedentes da Corte que reconhecem tal viabilidade.
É imprescindível repisar que nos precedentes inauguradores do entendimento que admitiu a investigação de relação avoenga independentemente da iniciativa do descendente em primeiro grau (pai dos pretensos netos), este não ajuizara pedido de reconhecimento de filiação em vida porque não vislumbrava tal necessidade, uma vez que era reconhecido e tratado como tal (desfrutava da posse de estado de filho).
Apenas com seu falecimento e do próprio avô-investigado, os descendentes registrados passaram a negar os direitos hereditários dos descedentes do pretenso filho não registrado e que não ajuizara a ação voltada ao reconhecimento da filiação (Terceira Turma - Resp 604.154/RS. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 01.07.2005; Resp 603.885/RS. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. DJ 11.04.2005; e Resp 269/RS. Rel. Min. Waldemar Zveiter. DJ 07.05.1990).
Ou seja, até por incidência do princípio da proporcionalidade, não haveria como negar o direito hereditário a pessoas que sempre foram considerados como filho/netos do próprio investigado. Assim, para admissão da ação de investigação de relação avoenga, bastou a simples prova de que seu pai (filho do investigado) teria interesse próprio de reconhecer em Juízo sua relação de paternidade com o pretenso avô, acaso em vida houvesse experimentado os empecilhos de reconhecimento e sonegação de direitos surgidos somente após sua morte e de seu ascendente imediato (NADER, Paulo. Curso de direito civil. Direito de Família. Vol. 5. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.296).
Também não serve como precedente, pois sequer houve enfrentamento do mérito da questão, a hipótese ventilada no AgRg no Ag 1319333/MG – Rel Min. Vasco Della Giustina. Dje 14.02.2001) na qual os netos, diretamente, mas com pais falecidos, alegaram que pretendiam, em investigação avoenga, apenas substituir os avós já constantes dos registros civis, por outros em função da prevalência da descendência genética.
Assim, os precedentes até então existentes, nos quais se reconheceu a possibilidade jurídica do pedido de reconhecimento de relação avoenga, não servem de paradigma ao caso em tela, pois não se enfrentou a existência de uma demanda investigatória de paternidade julgada improcedente contra o pai da proponente da demanda (pretensa neta), enquanto eventual reconhecimento do investigado como avô da ora recorrente, com base em vínculo genético, implicaria em infirmar o provimento jurisdicional de improcedência já transitado em julgado.
Assim, há de se salvaguardar tanto a dignidade do pretenso neto, admitida a busca de sua ancestralidade, quanto à do investigado, ante as consequências que atingem sua intimidade, seu direito à privacidade, suas relações sociais, sua sujeição a um sem número de demandas judiciais, movidas por um indefinido contingente de possíveis pretendentes, não olvidada a existência de balizas acerca de quem e quando se pode vir a Juízo buscar o reconhecimento da filiação, vedado tal intento se já há provimento judicial a seu respeito, limites de magnitude recíproca ao direito individual de reconhecimento da relação de parentesco.
Sem embargo, presentemente, nosso sistema normativo veda a possibilidade de existirem duas verdades a respeito de uma mesma relação de parentesco, sendo inconciliável uma sentença reconhecendo que o pai da recorrente não seja filho do investigado, enquanto esta possa, em tese, ser declarada como neta.
Dessa forma, à vista de expresso proibitivo legal à deflagração de demanda destina à investigação de ascendência por herdeiros quando já existente coisa julgada a respeito da matéria em relação ao sucedido (CC, art. 1606, § único), tem-se como juridicamente impossível o pedido da recorrente, sem prejuízo de seu genitor, ou acaso este venha falecer, a geração viva que o suceder, relativizarem o provimento jurisdicional então existente a respeito de sua ascendência.
Do exposto, o recurso deve ser conhecido parcialmente e, nessa extensão, desprovido. ...» (Min. Marco Buzzi).»

VOTO VENCIDO. Sr. Presidente, ouvi atentamente o brilhante voto do Sr. Ministro Raul Araújo, e, agora, o minucioso voto do Sr. Ministro Marco Buzzi, e compartilho de várias preocupações do voto de Sua Excelência e, também, de várias de suas premissas, especialmente, a de que o art. 1.606, do Código atual, na linha do que já dispunha o Código anterior, estabelece que a ação que pede o reconhecimento de filiação compete ao filho, e só passará a legitimidade ao neto caso o filho tenha falecido sem exercê-la, isso dentro de uma interpretação já construtiva da jurisprudência do STJ, ainda sob a égide do Código de 1916.
A razão de ser desse dispositivo é que cabe ao filho saber se ele quer, ou não, ter aquele pai reconhecido como tal; se ele quer, ou não, buscar a paternidade daquele pai que não o reconheceu espontaneamente. Penso que essa ação da neta, na verdade, está contida dentro da ação do filho, porque é impossível ser neta do investigado, sem que o pai fosse filho do investigado.
Quanto ao pai, houve apenas uma coisa julgada, que é a da primeira sentença que julgou improcedente o pedido, mas sem a prova do DNA, a qual não foi possível na época.
No âmbito desta primeira ação, o autor (o suposto filho) fez tudo que podia. Após o trânsito em julgado da sentença, ajuizou a ação rescisória, que foi julgada improcedente; depois, ele entrou com uma ação cautelar de produção de prova, para fazer o teste de DNA, que foi rejeitada; depois, ele propôs uma nova ação de investigação de paternidade, que foi extinta em face da coisa julgada da primeira. E, nesse caso, observo que essas outras decisões não fazem coisa julgada material, porque a decisão que extingue o processo em face da coisa julgada anterior faz coisa julgada apenas formal.
Há, portanto, peculiaridades excepcionalíssimas neste caso, ora em julgamento, dentro do presente contexto histórico. É um recurso especial antigo, bastante anterior ao leading case relatado no Supremo pelo Sr. Ministro Toffoli, que abriu a possibilidade de «relativização» da coisa julgada, apenas em situações excepcionais, para investigação da real paternidade biológica. E, portanto, na época em que foi ajuizada essa tentativa, pela neta, não havia nada mais que seu pai pudesse fazer para alcançar o tão perseguido reconhecimento de paternidade. Todas as portas estavam fechadas para ele. Era o panorama de fato e de direito, na época.
Hoje o plenário do Supremo Tribunal Federal entende que a ausência de exame de DNA é uma causa suficiente para relativização da coisa julgada em ação de investigação de paternidade. Neste ponto, reitero que o motivo do art. 1606 do Código Civil atual, e também do Código anterior, estabelecer que a legitimidade fosse apenas do filho, e não de outros parentes de grau mais remoto, era exatamente evitar que um neto pudesse, indiretamente, postular uma «paternidade para seu pai» que o seu próprio pai não quisera. Mas, neste caso, não há esse motivo, porque o pai deixou claríssimo, nas sucessivas ações por ele ajuizadas, de todos os meios possíveis, que ele pretendia ver reconhecido esse vínculo genético e que dele precisava, porque o fizera conjugado com o pedido de alimentos, o que leva a crer também que não seja uma pessoa de posses e que havia necessidade de alimentos; pelo menos foram postulados.
Então, diante de todos os insucessos do pai, insucessos estes sem DNA e anteriores ao precedente do pleno do Supremo, mas que tornam inequívoco que era vontade do pai obter esse reconhecimento de paternidade, eu observo, também, a peculiaridade de que agora estamos julgando apenas uma medida cautelar de produção antecipada de prova e que o próprio Tribunal de origem reconheceu que havia periculum in mora, dada a avançada idade do investigado.
Observo, por outro lado, que o voto muito bem elaborado do Ministro Marco Buzzi aventou a possibilidade de que essa autora possa a vir a ter interesse exclusivamente pessoal, distinto do de seu pai, em saber o seu vínculo genético por questões outras, como, por exemplo, relacionadas à saúde (no caso, questões de saúde sempre são urgentes e podem ser imprevisíveis) ou por questão de impedimentos matrimoniais ou de qualquer outra ordem, que seriam questões, a meu ver, compreendidas na pretensão mais ampla de reconhecimento dessa relação avoenga. Estas questões também ensejam o reconhecimento de que há um interesse jurídico dela de saber se realmente é neta do investigado.
E, também, na linha de jurisprudência do STJ, em caso de morte do pai dela, que já tentou quatro vezes obter esse reconhecimento de paternidade, ela teria uma inquestionável legitimidade ativa; ou seja, uma legitimidade que lhe é negada hoje em razão do princípio de que cabe ao pai a iniciativa. Se o pai morresse ela passaria a ter essa mesma legitimidade.
Portanto, não me parece, com a devida vênia, razoável que se venha a esperar o óbito do pai e o óbito do avô para obter essa possibilidade de exame de DNA. Isto considerando que o pai já a teve negada por quatro vezes. Eu penso, portanto, que, como regra, não deve ser admitido que a neta ou neto entre com uma ação de reconhecimento per saltum , passando por cima da vontade do pai.
Agora, nesse caso, dada a excepcionalíssima situação de que o pai tentou por quatro vezes, que o Supremo, muitos anos depois de interposto esse recurso especial, entendeu que havia possibilidade de relativizar a coisa julgada, e que nós estamos diante apenas de uma medida cautelar cujo laudo poderá servir a uma eventual ação também do pai em litisconsórcio com ela, ou só do pai, ou dela para pedir essas evidências genéticas para outras finalidades, penso que, nesse caso, tendo em vista o panorama de fato e de direito, as sucessivas tentativas do pai que evidenciam a sua vontade de esclarecer o vínculo genético, e a jurisprudência atual do Supremo, que a melhor solução para esse caso concreto é dar provimento ao recurso na forma proposta pelo Relator, para que se faça a prova postulada pela autora.
Então, com a devida vênia da divergência, acompanho voto o Relator, dadas as peculiaridades do caso, mas sem abrir um precedente para que netos de um modo geral entrem com ações per saltum passando por cima da vontade de seus pais. ...» (Min. Maria Isabel Gallotti).»


EMENTA OFICIAL: Recurso especial contra acórdão que manteve o indeferimento de petição inicial de cautelar para produção antecipada de prova voltada à realização de exame de DNA para instrução de futura demanda investigatória de relação avoenga.
1.NÃO CONHECIMENTO DA IRRESIGNAÇÃO POR DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL, DADA A AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA ENTRE O ARESTO IMPUGNADO E OS PRECEDENTES DA CORTE INDICADOS COMO PARADIGMAS, EVIDENCIANDO O INEDITISMO DO TEMA NO ÂMBITO DESTA CORTE (RISTJ, art. 255, §2º).
1.1. O caso concreto ensejador do presente recurso especial se diferencia dos precedentes em que o STJ reconheceu o direito próprio e personalíssimo do neto buscar constituição de relação avoenga, pois neles o genitor do investigante era pré-morto e não havia exercido pretensão em vida em lide cuja sentença de mérito julgou improcedente aquela ação, não havendo similitude fática a autorizar o conhecimento da insurgência por eventual dissídio jurisprudencial.
2.APRECIAÇÃO DO MÉRITO DA INSURGÊNCIA EM FUNÇÃO DO PREQUESTIONAMENTO DE NORMA ATINENTE AOS LIMITES DA COISA JULGADA, APLICANDO-SE O DIREITO À ESPÉCIE, NOS TERMOS DA SÚMULA 456-STF.
3.ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DE PRETENSA NETA, ENQUANTO VIVO SEU GENITOR, DE INVESTIGAR A IDENTIDADE GENÉTICA COM A FINALIDADE DE CONSTITUIÇÃO DE PARENTESCO.
3.1. Não há legitimação concorrente entre gerações de graus diferentes postularem o reconhecimento judicial de parentesco, com base em descendência genética, existindo somente legitimidade sucessiva, de modo que as classes mais próximas, enquanto vivas, afastam as mais remotas (CC, art. 1.606, «caput»).
4.INTERPRETAÇÃO DO DIREITO À IDENTIDADE GENÉTICA, CARENTE DE REGULAMENTAÇÃO, EM HARMONIA COM O REGIME DE FILIAÇÃO DISCIPLINADO NO CÓDIGO CIVIL - APARENTE TENSÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS DE MESMA MAGNITUDE QUE DEVE SER SOLUCIONADA MEDIANTE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE (RAZOABILIDADE), SENDO ESTE O VETOR HERMENÊUTICO APROPRIADO A SALVAGUARDAR OS NÚCLEOS ESSENCIAIS DE DIREITOS EM SUPOSTA COLIDÊNCIA - VALOR/PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA QUE TANTO INFORMA O DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL, LASTRADO NA VERDADE BIOLÓGICA DO INDIVÍDUO, COMO TAMBÉM, OS DIREITO DE FILIAÇÃO, PRIVACIDADE E INTIMIDADE DO INVESTIGADO E DAS DEMAIS PESSOAS ENVOLVIDAS EM LIDES VOLTADAS À CONSTITUIÇÃO COERCITIVA DE PARENTESCO, GARANTINDO-SE SEGURANÇA JURÍDICA NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES DE FAMÍLIA – INEXISTÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO ESPECÍFICA DO DIREITO À BUSCA DA VERDADE BIOLÓGICA, RESSALVADO O DISPOSTO NO ART. 48 DA Lei 8.069/90, QUE ENSEJA A OBSERVÂNCIA DO REGIME DE FILIAÇÃO REGULADO NO CÓDIGO CIVIL - IMPOSSIBILIDADE DO RECONHECIMENTO DE RELAÇÃO DE PARENTESCO DE FORMA INTERPOSTA (PER SALTUM), TENDO EM VISTA O CARÁTER LINEAR DO REGIME ESTABELECIDO NO CÓDIGO CIVIL (CC, ART. 1591/1594), DE MODO QUE AS CLASSES MAIS REMOTAS DERIVAM DAS PRÓXIMAS.
4.1. O princípio da proporcionalidade não autoriza conferir um caráter absoluto ao direito de identidade genética, para com base nele afastar a norma restritiva do art. 1.606 do CC, tendo em vista que o valor/princípio da dignidade da pessoa humana informa tanto o direito do indivíduo buscar sua verdade biológica, como também a segurança jurídica e a privacidade da intimidade nas relações de parentesco do investigado e das próprias gerações antecedentes à investigante, exceto venha o legislador futuramente regular o tema de forma diferente.
4.2. A concentração da legitimidade para investigação da identidade genética de determinado tronco familiar na geração mais próxima, enquanto viva, constitui entendimento mais adequado à salvaguarda do núcleo essencial dos direitos fundamentais em tensão, respectivamente, identidade genética de descendentes remotos e a privacidade e intimidade do investigado e das próprias classes de parentesco mais imediatas, garantindo-se segurança jurídica às relações de família e respectivo regime de parentesco, evitando-se o risco de sentenças contraditórias e transtornos irreversíveis ante o aforamento de múltiplas ações judiciais para o mesmo fim, por parte de um número muito maior de legitimados, então concorrentes.
4.3. Se, por um lado, é razoável obrigar qualquer indivíduo vir a juízo revelar sua intimidade e expor sua vida privada para se defender de demanda dirigida ao reconhecimento de parentesco, com consequências sócio familiares irreversíveis, não há essa mesma proporcionalidade para autorizar que esse idêntico investigado possa ser constrangido por todos os demais descendentes de determinado parente de grau mais próximo, sujeitando-se a um sem número de demandas, com possibilidade de decisões incongruentes, presentes e futuras, nas quais um mesmo tronco de descendência, cada qual por si, poderia postular declaração judicial de parentalidade lastrada em um igual vínculo genético.
4.4. No âmbito das relações de parentesco não decorrentes da adoção, o exercício do direito de investigação da identidade genética, para fins de constituição de parentesco é limitado, sim, pelo disposto no art. 1.606 do Código Civil, o qual restringiu o universo de quem (a geração mais próxima viva) e quando pode ser postulada declaração judicial de filiação (não haver anterior deliberação a respeito);
4.5. A extensão da legitimação também não se mostra necessária em função de o pai da investigante não ter conseguido realizar exame de DNA em anteriores demandas nas quais restou sucumbente em relação ao ora investigado, porquanto o próprio progenitor, por si, ainda detém a possibilidade de relativizar os provimentos jurisdicionais que não o reconheceram como filho, vez que, segundo o entendimento mais recente da Suprema Corte, pode ser reinaugurada essa discussão nos casos em que a improcedência decorreu de processo no qual não estava disponível às partes a realização do exame de DNA (Informativo 622 – RE 363.889, Rel. Min. Dias Toffoli, acórdão pendente de publicação- em 23.11.2011).
5. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO, VEZ QUE AS GERAÇÕES MAIS REMOTAS NÃO PODEM DESCONSTITUIR INDIRETAMENTE PROVIMENTOS JURISDICIONAIS DE IMPROCEDÊNCIA INERENTES À RELAÇÃO DE ESTADO PERTINENTE AO SEU ASCENDENTE IMEDIATO (CC, ART. 1.606, § ÚNICO).
6. RECURSO CONHECIDO EM PARTE, E NESSA EXTENSÃO, DESPROVIDO.
Rec. Esp. 876.434 - RS (2006/0183940-0) – Rel.: Min. Raul Araújo - R.P/Acórdão: Min. Marco Buzzi – Recte.: S C – Adv.: Cleanto Farina Weidlich e Outro - Recdo: D H Z – Adv.: Sem Representação nos Autos – J em 01/12/2011 – DJ 01/02/2012 – 4ª T. - STJ.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da QUARTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, após o voto-vista do sr. Ministro Marco Buzzi, conhecendo e negando provimento ao recurso, divergindo do Relator, e o voto da Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti, dando provimento ao recurso, acompanhando o Relator, e os votos dos Srs. Ministros Antonio Carlos Ferreira e Luis Felipe Salomão, acompanhando a divergência, por maioria, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Marco Buzzi. Vencido o Relator, o Sr. Ministro Raul Araújo, lavrará o acórdão o Sr. Ministro Marco Buzzi. Votaram vencidos os Srs. Ministros Raul Araújo e Maria Isabel Gallotti. Votaram com o Sr. Ministro Marco Buzzi os Srs. Ministros Antonio Carlos Ferreira e Luis Felipe Salomão.
Brasília (DF), 1º de dezembro de 2011(Data do Julgamento)
MINISTRO MARCO BUZZI, Relator p/ Acórdão


RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO RAUL ARAÚJO:
Trata-se de recurso especial interposto com fundamento no art. 105, inc. III, letras a e c, da Constituição Federal.
A recorrente ajuizou ação cautelar de produção antecipada de provas, na condição de suposta neta, contra D. H. Z., visando à realização de exame de DNA, para instrução de futura ação de investigação de relação avoenga.
A inicial foi indeferida, nos termos do art. 295, II, do Código de Processo Civil, sob o fundamento de que a autora não era parte legítima para ajuizar a demanda, na medida em que somente poderia ingressar com a ação, objetivando em última análise a investigação de relação avoenga, após a morte de seu pai e apenas se este não houvesse proposto investigatória de paternidade (fl. 27).
Irresignada, apelou, porém o colendo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul negou provimento ao recurso, em acórdão assim ementado:
«CAUTELAR. PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA. PEDIDO DA NETA PARA COLHER EXAME DE DNA VISANDO FUTURA AÇÃO INVESTIGATÓRIA DE RELAÇÃO AVOENGA. ANTERIOR AÇÃO PROPOSTA PELO GENITOR CONTRA O AVÔ JULGADA IMPROCEDENTE, COM EXAME HEMATOLÓGICO. DESCABIMENTO.
1. É descabido o pedido formulado pela neta para colher exame de DNA visando futura ação investigatória de relação avoenga tendo em mira que (a) o genitor é vivo ainda e a ação é personalíssima, bem como pelo fato de que (b) a anterior ação proposta pelo genitor contra o avô foi julgada improcedente, tendo sido realizado exame hematológico pelo método HLA.
2. Depois da improcedência da ação investigatória, o genitor ajuizou também pedido de produção antecipada de prova com vistas ao ajuizamento de nova investigação de paternidade sob fundamento de que, na época, inexistindo a prova pelo DNA, foi feito apenas o exame pelo método HLA, sendo tal pleito desacolhido tendo em mira o império da coisa julgada material, reconhecendo-se a impossibilidade jurídica do pedido.
Recurso desprovido, por maioria.» (fl. 130)
Os embargos de declaração opostos foram rejeitados.
Em suas razões de recurso especial (fls. 182/203), a ora recorrente aponta ofensa aos arts. 469, I e II, e 472 do Código de Processo Civil, além de divergência jurisprudencial, afirmando:
(I) não estar configurado o óbice da coisa julgada material, a obstaculizar o ajuizamento da ação cautelar de antecipação de prova, consubstanciada na realização de exame de DNA, para instrução de futura ação investigatória de relação avoenga. Salienta, para tanto, que «o v. acórdão recorrido transfere para a ora recorrente os efeitos da coisa julgada produzida em processo no qual a mesma não participou da relação jurídica, ou seja, não foi parte e nem terceira interessada» (CPC, art. 472), e que «as questões referentes aos motivos e a verdade dos fatos estabelecida com fundamento da sentença não fazem coisa julgada» (CPC, art. 469);
(II) não deve prevalecer a conclusão do v. aresto hostilizado no sentido de sua ilegitimidade ativa ad causam e da impossibilidade jurídica do pedido. Há precedentes do eg. Superior Tribunal de Justiça que acolhem a legitimidade do neto para postular o reconhecimento de relação avoenga, uma vez que se trata de direito próprio, e admitem como juridicamente possível essa postulação.
Requer, ao final, o provimento do apelo especial, para, afastando a coisa julgada e reconhecendo a legitimidade ativa ad causam da ora recorrente e a possibilidade jurídica do pedido, determinar o prosseguimento da ação cautelar de antecipação de prova, visando à instrução de futura ação investigatória de relação avoenga.
O recurso vem sem contrarrazões, pois desde a origem não foi instaurado o contraditório, na medida em que houve indeferimento, de plano, da petição inicial, nos termos do art. 295, II, do CPC.
Admitido o recurso especial na origem, subiram os autos.
Instado a se manifestar, o d. órgão do Ministério Público Federal, no parecer de fls. 290/296, da lavra do ilustre Subprocurador-Geral, Dr. Pedro Henrique Távora Niess, opinou pelo provimento do recurso, sob o fundamento de que, «in casu, cumpre assinalar que não há igualdade de partes entre a presente ação cautelar e as ajuizadas, anteriormente, pelo genitor da recorrente, que pudesse justificar a extensão dos efeitos da coisa julgada lá reconhecida. Acrescente-se que a recorrente defende direito seu - que não pode ser sacrificado por eventual deficiência de prova produzida por outro interessado. Negar-lhe o direito à produção de prova capaz de, por si só, determinar a relação de parentesco que alega, vinculando-a a outra decisão, da qual não participou é, realmente, impor-lhe os limites de uma lide já resolvida, mas da qual não participou».
É o relatório.


VOTO

O SENHOR MINISTRO RAUL ARAÚJO (Relator):
O presente recurso traz a exame desta Corte Superior questões jurídicas de direito de família da maior relevância e complexidade, exigindo densas reflexões da parte de todos.
Para melhor compreensão, é oportuno fazer-se digressão que remete inicialmente ao âmbito de anterior ação de investigação de paternidade ajuizada por J. D. dos S. M., pai da ora recorrente, contra D. H. Z., ora recorrido e suposto avô da ora recorrente, demanda que foi julgada improcedente, após a submissão das partes a exame sanguíneo pelo método HLA (Human Leukocyte Antigens).
Transitado em julgado o decisum, o autor promoveu ação rescisória, sustentando a existência de documento novo, consubstanciado na existência de novo método de exame para investigação de relação de parentesco - teste de DNA (pareamento cromossômico). Esse pedido também foi julgado improcedente. Após, ajuizou ação cautelar de produção antecipada de prova, igualmente rejeitada.
A seguir, J. D. dos S. M. propôs nova ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos e pedido de liminar de produção antecipada de provas, visando fosse realizado o referido exame genético pelas partes litigantes. No entanto, o feito foi extinto sem resolução de mérito, com base na existência de coisa julgada (CPC, art. 267, V). A r. sentença foi confirmada pelo c. Tribunal de Justiça estadual, em sede de apelação, sob o fundamento de que, em virtude de ofensa à res iudicata, seria «descabida a propositura de nova ação de investigação de paternidade sob o argumento de que, na ação anterior, não havia exame de DNA, que é uma técnica de bastante prestígio, sem dúvida, mas que consiste em mais um dos elementos de convicção possíveis» (fl. 135).
Agora, a recorrente S. C., filha do citado J. D. dos S. M., ajuíza ação cautelar de produção antecipada de prova contra o mesmo réu das ações anteriores, D. H. Z., ora recorrido, objetivando a realização de exame de DNA para a instrução de futura ação de declaração de relação avoenga. É no âmbito desta nova ação que foi interposto o presente recurso especial.
Como consta do relatório, o eg. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul negou provimento à apelação da ora recorrente, por entender que, embora estivesse configurado o periculum in mora, na medida em que o réu é «octogenário e possivelmente já esteja com a saúde combalida», não estava caracterizado o fumus boni iuris, tendo em vista as seguintes premissas:
«No entanto, mostra-se totalmente descabido o pedido formulado pela neta para colher exame de DNA visando futura ação investigatória de relação avoenga, quando o seu genitor é ainda vivo e, anteriormente, já havia proposto a ação de investigação de paternidade, que foi julgada improcedente, tendo sido colhida ampla produção de provas e também realizado exame hematológico pelo método HLA.
Além disso, lembro que, mesmo depois da improcedência da ação investigatória, o genitor ajuizou também pedido de produção antecipada de prova com vistas ao ajuizamento de nova investigação de paternidade sob fundamento de que, na época, inexistindo a prova pelo DNA, foi feito apenas o exame pelo método HLA, sendo tal pleito desacolhido tendo em mira o império da coisa julgada material, reconhecendo-se a impossibilidade jurídica do pedido.
(...)
Não há razoabilidade alguma na pretensão deduzida e, mais do que isso, verifica-se mesmo a impossibilidade jurídica do ajuizamento de nova ação investigatória visando o reconhecimento da relação avoenga diante do império da coisa julgada material.
Anteriormente o pai da recorrente ajuizou ação de investigação de paternidade, que foi julgada improcedente, tendo nela o investigado se submetido ao exame pelo método do HLA. A improcedência dessa ação levou o investigante a ajuizar ação rescisória, que foi julgada improcedente, ensejando recursos perante o STJ, que restaram desacolhidos.
A presente ação cautelar, dita preparatória para nova investigação de paternidade, esbarra na existência da coisa julgada material, circunstância que torna imutável a decisão que considerou improcedente a investigação de paternidade proposta pelo agravado contra o agravante.
Dessa forma, o recorrido não é pai de JOSÉ D. S. M. e esta relação jurídica não pode mais ser discutida, isto é, não poderá o filho reclamar novamente o reconhecimento forçado da paternidade, nem a neta o reconhecimento da relação avoenga, que é de segundo grau e, portanto, derivada daquela filiação.
(...)
Como se vê, não é possível rediscutir a questão da relação de paternidade que é novamente imputada ao recorrido, sendo totalmente descabida a ação cautelar, especialmente pelo fato de que a ação é personalíssima e o filho (pai da recorrente) já ajuizou (mais de uma vez, aliás) a ação que dispunha, sendo rechaçado o seu pleito.
A neta somente teria ação investigatória, caso esta não tivesse sido proposta pelo genitor. A relação avoenga é, friso, uma relação derivada da paternidade. Ou seja, é uma relação de segundo grau e que depende do parentesco de primeiro grau. O avô somente será avô, se o filho for o pai do neto, sendo irrelevante, aliás, se a relação entre pai e filho é biológica ou não.
Sendo a ação investigatória de paternidade personalíssima e estando vivo o pai da autora, ela não tem legitimidade para propor a ação, nem para buscar a produção antecipada de provas, sendo correta a sentença.
No entanto, cabe acrescer aos argumentos sentenciais, que mais do que a mera ilegitimidade ativa, estamos diante de impossibilidade jurídica do pedido, pois o Poder Judiciário já disse, em diversas oportunidades, que o recorrido não é pai de JOSÉ D. S. M., pai da recorrente. E, se o demandado não é pai do genitor da recorrente, evidentemente não é também avô dela.» (fls. 132/143, grifo nosso)
Eis agora o presente recurso especial, no qual três questões devem ser analisadas, para a aferição da plausibilidade do direito deduzido na ação cautelar de produção antecipada de prova, a saber: (I) a legitimidade ativa ad causam da autora, na condição de pretensa neta, para, com base em direito próprio, decorrente de sua personalidade, ajuizar a mencionada ação cautelar preparatória, visando a averiguar, agora por meio de exame de DNA, o parentesco que acredita ter com o réu, suposto avô; (II) a possibilidade jurídica do pedido que ampara a pretensão deduzida na medida acautelatória, visto que, em última análise, visa à investigação de relação avoenga, consectária da paternidade já investigada e tida como improcedente; e, (III) a existência de óbice relativo à coisa julgada, decorrente daquela anterior ação de investigação de paternidade ajuizada pelo pai da ora recorrente contra o mesmo réu e julgada improcedente, a alcançar a recorrente e obstar o ajuizamento de nova ação cautelar, a qual visa instruir futura demanda declaratória de relação avoenga.
Passa-se à análise.
I - Legitimidade ativa ad causam e Possibilidade jurídica do pedido:
As condições da ação devem ser conjuntamente examinadas, na medida em que em alguns aspectos se inter-relacionam.
Convém sejam transcritas as normas do Código Civil de 1916 e do atual, que mais diretamente disciplinam o tema:
a) no CC/1916:
«Art. 350. A ação de prova da filiação legítima compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor, ou incapaz.»
«Art. 351. Se a ação tiver sido iniciada pelo filho, poderão continuá-la os herdeiros, salvos se o autor desistiu, ou a instância foi perenta.»
«Art. 363. Os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no art. 183, ns. I a VI, têm ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação:
I - Se o tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretendido pai;
II - Se a concepção do filho reclamante coincidiu com o rapto da mãe pelo suposto pai, ou suas relações sexuais com ela;
III - Se existir escrito daquele a quem se atribui a paternidade, reconhecendo-a expressamente.»
b) no CC/2002:
«Art. 1.606. A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz.
Parágrafo único - Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo.»
Como se vê, no Código Civil de 2002 não há repetição da norma do art. 363 do Código Civil de 1916, a qual referia apenas aos filhos como legitimados para «a ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação».
Merece, então, destaque o fato de que, ainda na vigência do Código de 1916, a jurisprudência do eg. Superior Tribunal de Justiça delineava que a menção a «pais» feita naquele dispositivo legal não poderia ser tida como limitação à investigação de outras relações de parentesco, além da paternidade.
De fato, no julgamento da Ação Rescisória 336/RS, a Corte chegou à seguinte conclusão:

CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO RESCISÓRIA. CARÊNCIA AFASTADA. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE RELAÇÃO AVOENGA E PETIÇÃO DE HERANÇA. POSSIBILIDADE JURÍDICA. CC DE 1916, ART. 363.

I. Preliminar de carência da ação afastada (por maioria).
II. Legítima a pretensão dos netos em obter, mediante ação declaratória, o reconhecimento de relação avoenga e petição de herança, se já então falecido seu pai, que em vida não vindicara a investigação sobre a sua origem paterna.
III. Inexistência, por conseguinte, de literal ofensa ao art. 363 do Código Civil anterior (por maioria).
IV. Ação rescisória improcedente.»
(AR 336/RS, Segunda Seção, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO JUNIOR, DJ de 24/4/2006, grifo nosso)
Afirmou-se ali a possibilidade de, sem ofensa ao referido art. 363 do Código Civil de 1916, o pretenso neto ajuizar ação contra o suposto avô visando ao conhecimento de sua identidade genética e, assim, dos direitos e obrigações dela decorrentes. Cabe transcrever trechos dos votos de mérito dos eminentes Ministros Aldir Passarinho Junior (relator) e Jorge Scartezzini (revisor), in litteris:
VOTO DO MINISTRO ALDIR PASSARINHO JUNIOR:
«Vencido na preliminar, examino o mérito da rescisória, que versa sobre apontada violação literal ao art. 363 do Código Civil anterior, que reza:
'Art. 363. Os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no art. 183, ns. I a VI, têm ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação'.
É que não compreendo na menção a pais a limitação enxergada pelos autores, e até doutrinária, porquanto dela extraio a mesma compreensão que teve a douta maioria então votante, no sentido de que a substituição é possível na linha ascendente, pois os avós geraram os pais, daí ser absolutamente legítimo que um neto busque a sua identidade verdadeira, a sua família, e, evidentemente, daí decorrendo seus direitos e obrigações.
Há muito se vem abrandando as exigências ao reconhecimento de filiação, e exemplo disso está no afastamento, mesmo antes do ECA, do prazo prescricional para que o filho busque o reconhecimento de paternidade, como se vê do EREsp 237.553/RO, 2ª Seção, Rel. p/acórdão Min. Ari Pargendler, DJU de 05.04.2004.
Se o direito é personalíssimo do filho investigar o pai, também o é em relação ao avô, notadamente porque o pai já é falecido, o que é importante sempre ressaltar. A relação parental não se extingue com uma geração, na linha ascendente ou descendente. É contínua.
E, inobstante a alentada e judiciosa doutrina a respeito, parece-me que em matéria de família – origem natural do ser humano – limitação dessa ordem, que se extrai de uma interpretação diminuta do texto legal, não convence ser a melhor, rogando máxima vênia ao entendimento divergente.» (grifo nosso)
VOTO DO MINISTRO JORGE SCARTEZZINI:
«O art. 363, «caput», do CC/1916, vigente à época da prolatação do v. Acórdão rescindendo, encontrava-se assim disposto, in verbis:
'Os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no art. 183, I a VI, têm ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação.'
À primeira, não se ignora que, doutrina e jurisprudência, diante da peremptória redação de citado dispositivo, praticamente à unanimidade, sustentavam a restrição absoluta da legitimidade à propositura de ação investigatória de paternidade ao suposto filho, não extensível sequer aos seus herdeiros, os quais poderiam, tão-somente, dar prosseguimento à lide em caso de falecimento do autor na respectiva pendência (cf. fls. 26/79).
Repise-se, porém, que aludido entendimento restritivo encontrava-se, de regra, embasado tão-só na literalidade do dispositivo legal em comento, destacando-se, entre as escassas justificativas agregadas a esposado argumento, as seguintes elucubrações, de cunho moral, extraídas, respectivamente, das obras dos e. CLOVIS BEVILAQUA e CARLOS MAXIMILIANO:
'Justifica-se o rigor do princípio pelas considerações de que: 1º, ao indivíduo, exclusivamente, interessa a situação moral que lhe provém da sua legitimidade; ninguém poderá constrangê-lo a colocar-se numa posição social, que não deseja; 2º, o estado é um modo de ser próprio da pessoa que não se transmite a outrem.' ('Código Civil Anotado', v. 2, Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves, 1933, p. 316)
'A prerrogativa de investigar a paternidade é personalíssima; a ação cabe só ao filho; reserva-se a este o direito, absoluto, de evitar ou recusar uma devassa escandalosa no passado seu e de sua mãe.' ('Direito das Sucessões', v. I, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 1942, p. 297)
Pois bem, a uma, tenho que, mesmo imprimindo-se ao art. 363 do CC/1916 interpretação estritamente gramatical, conquanto não haja previsão acerca da legitimidade dos herdeiros de pretenso filho à interposição de demanda investigatória de paternidade, analogamente inexiste expressa vedação à mesma, pelo que, de plano, restaria afastada a impossibilidade jurídica de, excepcionalmente, conferir-se legitimidade aos netos para o ajuizamento de ação objetivando o reconhecimento de parentesco com suposto avô. A propósito, oportuna a transcrição das considerações expendidas pelo e. Ministro WALDEMAR ZVEITER , quando do julgamento do REsp 269/RS:
(...)
Ademais, ressalte-se, ainda que não se repute adequada a adoção de exegese genericamente liberalizante ao art. 363 do CC/1916, também é inegável que a interpretação meramente gramatical do mesmo em quaisquer situações, levando à ilegitimidade absoluta dos herdeiros de suposto filho para pleitearem o reconhecimento de parentesco ascendente, não se coaduna com a orientação preconizada no art. 5º da LICC, norma de sobredireito, segundo a qual, 'na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum'.
Com efeito, não se mostra razoável, à luz dos mais comezinhos princípios de justiça, com fulcro, exclusivamente, na ausência de previsão legal do pedido, ainda mais que tendente ao esclarecimento da genealogia, da própria origem do indivíduo, negar-lhe acesso aos órgãos jurisdicionais, em total detrimento ao princípio da inafastabilidade da prestação jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF/88) e à necessidade de pacificação social, escopo último, aliás, do processo civil moderno:
(...)
A propósito, conquanto não se olvide que, in casu, a análise de afronta a literal disposição legal refira-se, por óbvio, à legislação vigente à época da prolatação do v. Aresto rescindendo, releva considerar que a conclusão pelo mesmo adotada, no sentido de conferir aos então recorrentes legitimidade para buscarem declaração judicial de existência de relação avoenga, encontra-se em consonância com os ditames da nova legislação civil pátria, na medida em que, embora não tenha o CC/2002 explicitamente adotado quanto ao tema orientação liberalizante, também não manteve a posição restritiva, não havendo sequer reproduzido, total ou parcialmente, o art. 363 do CC/1916.
Destarte, in casu, em atenção às respectivas peculiaridades, reputo acertada a exegese emprestada pelo v. acórdão rescindendo ao art. 363 do CC/1916, reconhecendo a legitimidade dos então recorrentes, ora réus, à propositura da Ação Declaratória de Relação Avoenga cumulada com Petição de Herança, notadamente ante a circunstância de se constituir fato público a possibilidade de existência do parentesco aduzido. Não há, pois, que se falar em vulneração a referido dispositivo infraconstitucional, na medida em que, ademais, conforme pacificado nesta Corte (REsp 488.512/MG, de minha Relatoria , DJU 06.12.2004; AR 464/RJ, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO , DJU 19.12.2003), para que a Ação Rescisória calcada no inciso V do art. 485, do CPC, prospere, é necessário que a interpretação dada pelo decisum rescindendo seja de tal modo aberrante que viole o dispositivo legal em sua literalidade, o que não ocorre no caso.» (grifo nosso)
Daí, pode-se inferir que, já na vigência do Código Civil de 1916, o eg. Superior Tribunal de Justiça percebia a necessidade de fazer uma interpretação sistemática dos dispositivos legais que tratavam do direito à filiação. Com isso, afastava a interpretação meramente literal, condizente com a época de criação do Código, mas que engessaria o ordenamento jurídico. A interpretação mais restrita já então mostrava-se desconforme com os princípios constitucionais incidentes, excluindo da apreciação do Poder Judiciário direitos fundamentais cuja relevância se sobrepõe à literalidade da norma.
Foi também essa a orientação esposada no primeiro precedente desta eg. Corte de Justiça que reconheceu a viabilidade do ajuizamento de ação declaratória de relação avoenga, no julgamento do Recurso Especial nº 269/RS. Salientou o Relator, o ilustrado Ministro WALDEMAR ZVEITER, em seu percuciente voto, que «vedar aos recorrentes o exercício do direito à ação seria negar-lhes a prestação jurisdicional, o que se não afigura nem jurídico nem justo. Não se põe dúvidas ser majoritário o entendimento, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, no sentido de que a ação de investigação de paternidade, assim como posta na redação do artigo 363 do Código Civil, é personalíssima. Contudo hoje, (...) há de se ler a redação dada ao artigo 363 do Código Civil não mais de forma restritiva e na ótica adequada a seu tempo, propugnada pelo grande Clóvis Beviláqua. Mudou a época, mudaram os costumes, transformou-se o tempo, redefinindo valores e conceituando o contexto familiar de forma mais ampla que com clarividência pôs o constituinte de modo o mais abrangente, no texto da nova Carta. E nesse novo tempo não deve o Poder Judiciário, ao qual incumbe a composição dos litígios com olhos postos na realização da Justiça limitar-se à aceitação de conceitos pretéritos que não se ajustem à modernidade» (Terceira Turma, DJ de 7/5/1990).
Eis a ementa do referido julgado:

PROCESSUAL CIVIL - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE - AÇÃO DECLARATÓRIA - RELAÇÃO AVOENGA.

I - Conquanto sabido ser a investigação de paternidade do art. 363 do código civil ação personalíssima, admissível a ação declaratória para que diga o Judiciário existir ou não a relação material de parentesco com o suposto avô que, como testemunha, firmou na certidão de nascimento dos autores a declaração que fizera seu pai ser este, em verdade seu avô, caminho que lhes apontara o Supremo Tribunal Federal quando, excluídos do inventario, julgou o recurso que interpuseram.
II - Recurso conhecido e provido.»
Com isso, tem-se também como afastada a impossibilidade jurídica do pedido.
Como se sabe, a possibilidade jurídica do pedido (ou da causa de pedir) demanda compatibilidade da pretensão com os fins e princípios do próprio ordenamento jurídico. Assim, o reconhecimento dessa condição da ação não tem o condão de dizer, de plano, o direito, julgando procedente o pedido autoral, mas de apurar se o fato afirmado pela parte mostra-se compatível com a possibilidade de eventual entrega de tutela jurisdicional, seja em face da existência de regulação normativa que, em tese, possa amparar a pretensão, seja em razão da inexistência de vedação legal.
Nesse sentido a jurisprudência do eg. Superior Tribunal de Justiça consagra o entendimento de que «a possibilidade jurídica do pedido consiste na admissibilidade em abstrato da tutela pretendida, vale dizer, na ausência de vedação explícita no ordenamento jurídico para a concessão do provimento jurisdicional» (REsp 254.417/MG, 4ª Turma, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe de 2.2.2009).
Conforme salientado pelo eminente Ministro Jorge Scartezzini, no voto proferido na mencionada AR 336/RS, acima transcrito, no Código Civil de 2002, ainda que não haja nenhuma previsão explícita de investigação de relação avoenga, também não há nenhuma vedação, explícita ou implícita, nesse sentido.
Portanto, hoje, quando o Código Civil já não reproduz a norma do antigo art. 363, trazendo apenas as dos anteriores arts. 350 e 351, no art. 1.606 do CC/2002, a melhor exegese desse dispositivo não pode permitir restrições quanto ao reconhecimento de relação avoenga. Assim, a este dispositivo também deve ser dada uma interpretação sistemática, prestigiando os direitos à filiação e à ancestralidade, sobretudo porque a própria Constituição Federal prestigia esses direitos, quando adota o princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). Assim, deve ser afastada qualquer interpretação restritiva da norma, tendo em vista que a filiação não se esgota em uma só geração (relação entre pais e filhos); ao contrário, os vínculos de parentesco em linha reta tendem ao infinito. Há diversas outras relações parentais que surgem da relação pai e filho.
CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD, ao analisarem o disposto no mencionado art. 1.606 do Código Civil de 2002, ressaltam que não se deve ater a uma interpretação restritiva desse dispositivo. Salientam, para tanto:
«Apesar de se tratar de ação personalíssima, como visto alhures, os herdeiros do investigante, que já ajuizou a ação investigatória, têm legitimidade para prosseguir na ação, salvo se houve extinção do processo (parágrafo único do art. 1.606 do Código Civil).
No entanto, é preciso afirmar, mais do que isso, a legitimidade dos herdeiros (netos) para a propositura da ação, iniciando-a contra o avô. É a chamada investigação de parentalidade avoenga.
O art. 1.606 do Codex traz regra exatamente nesse sentido, autorizando os herdeiros a propor a ação 'se ele morrer menor ou incapaz'. Justifica-se a legitimação dos herdeiros em tal hipótese pela impossibilidade do investigante aforar a ação, em face de sua incapacidade. Assim, tendo falecido incapaz, e, por conseguinte, impossibilitado de ajuizar a ação pessoalmente, razoável que estejam legitimados os herdeiros.
Com base no tratamento constitucional da filiação - impossibilitando a limitação do estado de filiação - é preciso ir mais longe. Assim, afirmamos que o neto detém legitimidade ativa ad causam para promover a investigação contra o seu avô, independentemente de ter o investigante falecido no gozo de plena capacidade, exercitando a investigatória avoenga.
É que, como pontifica Belmiro Pedro Welter, 'o direito personalíssimo do filho é mesmo direito personalíssimo do pai, do avô, do neto etc. Se o filho não quer exercer o seu direito, não se pode proibir que o seu filho (neto) possa exercê-lo, sob pena de se estar negando ao neto o exercício de seu direito nativo de personalidade'.
Desse modo, o neto que propõe a investigatória contra o seu avô está perseguindo direito próprio, reclamando a sua ancestralidade, sua identidade genética, afirmando sua própria dignidade. Não fosse só isso, mister seu interesse também econômico, vez que passará a ser possível cobrar alimentos do avô, pleitear herança, alimentos etc.»
(in Direitos das Famílias. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2008, p. 548, grifo nosso)
NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, ao interpretarem o referido art. 1.606 do Código Civil, salientam:
«2. A ação declaratória de estado. A ação declaratória do estado de filho, conhecido como de investigação de paternidade, é apenas uma espécie do gênero, declaratória de estado familiar. Ela pode ser exercida por quem tenha interesse jurídico em atribuir a um determinado fato da vida uma conseqüência jurídica. Esse interesse pode ser revelado por alguém que pretenda apontar como sendo descendente de uma estirpe, ainda que longínqua. Os limites do pedido devem ser estabelecidos a partir das possibilidades reais de apuração da verdade e a partir da demonstração efetiva de interesse jurídico. Não contém nenhum fator de quebra do equilíbrio do sistema acolher-se para julgamento a pretensão de quem queira apontar a outrem uma ascendência parental, para apontar-lhe parentesco em linha reta, que o coloca na situação jurídica especialíssima de herdeiro necessário.
3. Situações diferentes. A) Imagine-se a possibilidade de alguém se dizer e provar ser neto ou bisneto de um grande pintor que aparentemente não tenha deixado bens, mas que tenha tido, após a sua morte, a obtenção de grande soma em virtude do pagamento de direitos autorais. Evidentemente, na ausência do filho que poderia, mas não quis, ver seu estado de filho reconhecido, pode o filho deste, neto daquele, vir a juízo para provar que é neto, descendente pela linha reta, e que faz jus à herança do avô? Será que o CC 1606 lhe impedira a pretensão? Parece-nos que não. O referido comando legal limita o direito de herdeiros postularem o direito próprio do de cujus, a não ser que este tenha falecido menor ou incapaz? Não limita, e se o fizesse seria inconstitucional, o direito próprio do herdeiro, no caso, o neto do pintor e, igualmente, seu herdeiro necessário. B) Observe-se como é diferente a situação de, no mesmo exemplo, o pintor (A) ter deixado filho (B), e este, um irmão por parte de mãe (C), que não fosse filho do pintor. Na ausência do filho do pintor, morto maior e capaz sem ter postulado a filiação em face do pintor, seu irmão não poderia postular o direito de herança, posto que se daria o óbice do CC 1606, aqui, sim, corretamente: o irmão (C), aspirante da herança de B, não é herdeiro, nem poderia sê-lo do pai de B (A), também morto. Sua pretensão limita-se à herança de B e nenhum direito próprio teria em face de A. Mas essa limitação, evidentemente, não alcança, nem poderia alcançar, o neto, igualmente herdeiro necessário, descendente em linha reta do falecido, ainda mais diante do claríssimo comando do CC 1811. É evidente, em casos assim, o interesse jurídico próprio de quem pretende declarar-se o estado de neto, ou de bisneto de outrem.»
(in Código Civil Comentado. 6ª ed., rev., amp. e atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 1.073-1.074, grifo nosso)
Então, no que tange à controvérsia dos autos, é de entender-se que, embora não haja previsão legal que regulamente, de forma direta, a declaratória de relação avoenga, também não há vedação expressa a inviabilizar seu ajuizamento.
E foi essa a compreensão adotada em precedente de que foi relator o ilustre Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, em julgamento que traz a seguinte ementa:
«RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. RELAÇÃO AVOENGA. RECONHECIMENTO JUDICIAL. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.
- É juridicamente possível o pedido dos netos formulado contra o avô, os seus herdeiros deste, visando o reconhecimento judicial da relação avoenga.
- Nenhuma interpretação pode levar o texto legal ao absurdo.» (REsp 604.154/RS, Terceira Turma, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, DJ de 1º/7/2005, grifo nosso)
Há também recente precedente no âmbito da eg. Segunda Seção desta Corte de Justiça no sentido do reconhecimento da possibilidade jurídica do pedido e da legitimidade ativa ad causam, para o ajuizamento de ação de declaração de relação avoenga, tendo em vista a existência de direito de agir, próprio e personalíssimo, do suposto neto. Eis a ementa:
«Direito civil. Família. Ação de declaração de relação avoenga. Busca da ancestralidade. Direito personalíssimo dos netos. Dignidade da pessoa humana. Legitimidade ativa e possibilidade jurídica do pedido. Peculiaridade. Mãe dos pretensos netos que também postula seu direito de meação dos bens que supostamente seriam herdados pelo marido falecido, porquanto pré-morto o avô.
- Os direitos da personalidade, entre eles o direito ao nome e ao conhecimento da origem genética são inalienáveis, vitalícios, intransmissíveis, extrapatrimoniais, irrenunciáveis, imprescritíveis e oponíveis erga omnes.
- Os netos, assim como os filhos, possuem direito de agir, próprio e personalíssimo, de pleitear declaratória de relação de parentesco em face do avô, ou dos herdeiros se pré-morto aquele, porque o direito ao nome, à identidade e à origem genética estão intimamente ligados ao conceito de dignidade da pessoa humana.
- O direito à busca da ancestralidade é personalíssimo e, dessa forma, possui tutela jurídica integral e especial, nos moldes dos arts. 5º e 226, da CF/88.
- O art. 1.591 do CC/02, ao regular as relações de parentesco em linha reta, não estipula limitação, dada a sua infinitude, de modo que todas as pessoas oriundas de um tronco ancestral comum, sempre serão consideradas parentes entre si, por mais afastadas que estejam as gerações; dessa forma, uma vez declarada a existência de relação de parentesco na linha reta a partir do segundo grau, esta gerará todos os efeitos que o parentesco em primeiro grau (filiação) faria nascer.
- A pretensão dos netos no sentido de estabelecer, por meio de ação declaratória, a legitimidade e a certeza da existência de relação de parentesco com o avô, não caracteriza hipótese de impossibilidade jurídica do pedido; a questão deve ser analisada na origem, com a amplitude probatória a ela inerente.
- A jurisprudência alemã já abordou o tema, adotando a solução ora defendida. Em julgado proferido em 31/1/1989 e publicado no periódico jurídico NJW (Neue Juristische Woche) 1989, 891, o Tribunal Constitucional Alemão (BVerfG) afirmou que 'os direitos da personalidade (Art. 2 Par. 1º e Art. 1º Par. 1º da Constituição Alemã) contemplam o direito ao conhecimento da própria origem genética.'
- Em hipótese idêntica à presente, analisada pelo Tribunal Superior em Dresden (OLG Dresden) por ocasião de julgamento ocorrido em 14 de agosto de 1998 (autos nº 22 WF 359/98), restou decidido que 'em ação de investigação de paternidade podem os pais biológicos de um homem já falecido serem compelidos à colheita de sangue'.
- Essa linha de raciocínio deu origem à reforma legislativa que provocou a edição do § 372ª do Código de Processo Civil Alemão (ZPO) em 17 de dezembro de 2008, a seguir reproduzido (tradução livre): '§ 372ª Investigações para constatação da origem genética. I. Desde que seja necessário para a constatação da origem genética, qualquer pessoa deve tolerar exames, em especial a coleta de amostra sanguínea, a não ser que o exame não possa ser exigido da pessoa examinada. II. Os §§ 386 a 390 são igualmente aplicáveis. Em caso de repetida e injustificada recusa ao exame médico, poderá ser utilizada a coação, em particular a condução forçada da pessoa a ser examinada.'
- Não procede a alegada ausência de provas, a obstar o pleito deduzido pelos netos, porque ao acolher a preliminar de carência da ação, o TJ/RJ não permitiu que a ação tivesse seguimento, sem o que, não há como produzir provas, porque não chegado o momento processual de fazê-lo.
- Se o pai não propôs ação investigatória quando em vida, a via do processo encontra-se aberta aos seus filhos, a possibilitar o reconhecimento da relação avoenga; exigem-se, certamente, provas hábeis, que deverão ser produzidas ao longo do processo, mas não se pode despojar do solo adequado uma semente que apresenta probabilidades de germinar, lançando mão da negativa de acesso ao Judiciário, no terreno estéril da carência da ação.
- O pai, ao falecer sem investigar sua paternidade, deixou a certidão de nascimento de seus descendentes com o espaço destinado ao casal de avós paternos em branco, o que já se mostra suficiente para justificar a pretensão de que seja declarada a relação avoenga e, por consequência, o reconhecimento de toda a linha ancestral paterna, com reflexos no direito de herança.
- A preservação da memória dos mortos não pode se sobrepor à tutela dos direitos dos vivos que, ao se depararem com inusitado vácuo no tronco ancestral paterno, vêm, perante o Poder Judiciário, deduzir pleito para que a linha ascendente lacunosa seja devidamente preenchida.
- As relações de família tal como reguladas pelo Direito, ao considerarem a possibilidade de reconhecimento amplo de parentesco na linha reta, ao outorgarem aos descendentes direitos sucessórios na qualidade de herdeiros necessários e resguardando-lhes a legítima e, por fim, ao reconhecerem como família monoparental a comunidade formada pelos pais e seus descendentes, inequivocamente movem-se no sentido de assegurar a possibilidade de que sejam declaradas relações de parentesco pelo Judiciário, para além das hipóteses de filiação.
- Considerada a jurisprudência do STJ no sentido de ampliar a possibilidade de reconhecimento de relações de parentesco, e desde que na origem seja conferida a amplitude probatória que a hipótese requer, há perfeita viabilidade jurídica do pleito deduzido pelos netos, no sentido de verem reconhecida a relação avoenga, afastadas, de rigor, as preliminares de carência da ação por ilegitimidade de parte e impossibilidade jurídica do pedido, sustentadas pelos herdeiros do avô.
- A respeito da mãe dos supostos netos, também parte no processo, e que aguarda possível meação do marido ante a pré-morte do avô dos seus filhos, segue mantida, quanto a ela, de igual modo, a legitimidade ativa e a possibilidade jurídica do pedido, notadamente porque entendimento diverso redundaria em reformatio in pejus.
Recurso especial provido.»
(REsp 807.849/RJ, Segunda Seção, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJe de 6/8/2010, grifo nosso)
É, pois, de ter-se como juridicamente possível ao neto investigar o vínculo de parentesco avoengo, como forma de materialização de importante aspecto do direito da personalidade. Sem dúvida, a declaratória de relação avoenga caracteriza-se como ação de estado, fundada no status familiae, destinada a dirimir conflito de interesse relativo ao estado de uma pessoa natural. Envolve discussão de verdadeiro direito da personalidade e, como tal, é imprescritível, irrenunciável e inalienável.
Com efeito, tratando-se de direito próprio, o neto deve ser considerado parte legítima para o ajuizamento de ação visando, em última análise, ao reconhecimento de relação avoenga. A prerrogativa de ver reconhecida a relação de parentesco constitui direito próprio, personalíssimo com relação ao nome e à ancestralidade. Não se trata de exercício do direito de ação em nome de outrem (legitimação extraordinária) - ou seja, ajuizamento de ação pelo neto, em nome do pai, para investigar a paternidade deste -, mas de ação de declaração de relação parental avoenga ajuizada em nome próprio pelo neto para atender a interesse próprio de conhecimento de sua ancestralidade e, consequentemente, dos direitos a ela inerentes.
Portanto, mostram-se presentes as condições da ação ora tratadas para o ajuizamento de ação cautelar de produção antecipada de prova, para instrução de futura declaratória de relação avoenga.
II - Coisa Julgada:
Dispõe o art. 468 do Código de Processo Civil: «A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.»
Por sua vez, a norma inserta no art. 472 do Estatuto Processual Civil estabelece, in verbis:
«Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.»
Da leitura de tais normas verifica-se que, para a configuração da res iudicata, é necessário identidade de partes, causa de pedir e pedido (CPC, art. 301, inciso VI e § 2º). Fora dessa tríplice identidade não há como invocar-se a autoridade da coisa julgada. Basta, portanto, a não coincidência de um desses elementos na nova demanda para que fique afastada qualquer ofensa à coisa julgada. Este é o escopo da garantia constitucional da res iudicata (CF, art. 5º, XXXVI), a qual imuniza o decisum transitado em julgado nos limites da lide, ou seja, do que foi decidido acerca de determinada pretensão ou demanda estabelecida entre partes específicas (CPC, arts. 468, 471 e 472).
Com efeito, a coisa julgada possui limites objetivos e subjetivos.
A limitação objetiva da coisa julgada (CPC, art. 468) estabelece-se em torno do fato de que a sentença tem força de lei nos limites da lide decidida, sendo certo que «a lide decidida é aquela levada a juízo através de um pedido da parte, colocado como questão principal. Logo, resta evidente que, de acordo com esse artigo, a autoridade da coisa julgada só recai sobre a parte da decisão que julga o pedido (a questão principal, a lide), ou seja, sobre a norma jurídica concreta contida no seu dispositivo» (in DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, Vol. 2, 2ª ed., Salvador: Jus Podivm, 2008, p. 561).
Por sua vez, a limitação subjetiva da coisa julgada (CPC, art. 472) informa que a res iudicata estabelecida entre as partes não pode atingir desfavoravelmente ou beneficiar terceiro que não integrou a lide, ressalvadas, é claro, as hipóteses de eficácia ultra partes dos atos judiciais (v.g: sucessão; substituição processual) e de eficácia erga omnes dos atos judiciais (v.g: ações coletivas que versem sobre direitos difusos ou direitos individuais homogêneos; ações de controle concentrado de constitucionalidade).
Nas palavras de Chiovenda: «Tutti sono tenuti a riconoscere il giudicato tra le parti, ma non possono esserne pregiudicati», ou seja, «a coisa julgada formada entre as partes não pode ser desconhecida por ninguém, mas ninguém além das partes pode ser atingido desfavoravelmente por ela, sem sua própria esfera de direitos».
Ressalte-se, por oportuno, que a parte final do art. 472 (causas relativas ao estado de pessoas) não trata de hipótese de eficácia ultra partes dos atos judiciais, ao contrário do que precipitadamente se possa deduzir, mas de eficácia inter partes. Nas ações de estado - como o é a dos presentes autos - devem ser citados todos os interessados, para que, em relação a eles, a sentença seja válida e eficaz. Haverá, no caso, litisconsórcio necessário e, pois, eficácia do julgado entre as partes que compõem o feito.
A respeito do tema, confira-se a lição de FREDIE DIDIER JÚNIOR:
«6. Coisa Julgada nas Ações de Estado
A parte final do art. 472 está assim redigida: 'Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros'.
A Redação do dispositivo pode dar a falsa impressão de que, em ações de estado, a coisa julgada é ultra parte. Na verdade, a regra diz respeito ao litisconsórcio: em ações de estado, todos os interessados devem ser citados, para que a sentença seja válida e lhes possa ser eficaz. Impõe-se a necessidade do litisconsórcio em tais situações, de resto já extraível do art. 47 do CPC. Se todos os interessados forem citados, todos se submeterão à coisa julgada, porque terão sido parte no processo.»
(in Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, Vol. 2, 2ª ed., Salvador: Jus Podivm, 2008, p. 567)
Na hipótese em exame, de um lado, a lide não envolve partes idênticas. Na presente ação cautelar de produção antecipada de prova, objetivando a realização de exame de DNA, embora a parte ré seja coincidente - D. H. Z. -, a parte autora - S. C. - é diversa da daquelas outras ações, ajuizadas pelo pai da ora promovente.
Ademais, no âmbito da ação investigatória de paternidade - que é ação de estado -, não houve a formação de litisconsórcio, com a inclusão no feito da pretensa neta, ora recorrente (CPC, art. 472, parte final).
Portanto, em face dela não se estendeu a eficácia das decisões proferidas naqueles outros feitos.
De outro lado, a causa de pedir e o pedido, nesta ação, são diversos daqueles constantes das demandas anteriores. Neste processo a pretensão de direito material relaciona-se à investigação de relação avoenga, enquanto naqueles outros feitos, à investigação de paternidade. Embora essas relações de parentesco estejam na mesma linha reta - de maneira que da paternidade é que resulta, em tese, a relação avoenga -, cada qual corresponde a um direito personalíssimo próprio do respectivo titular, constituindo, pois, causa de pedir e pedidos distintos.
Acrescente-se, por oportuno, que o afastamento da paternidade, naquela primeira ação investigatória - ajuizada por J. D. dos S. M. (pai da ora recorrente) contra D. H. Z. (suposto avô da ora recorrente) -, não foi feito com base em prova contundente (exame de DNA), porquanto: (I) à época da primeira demanda ajuizada pelo pai da ora recorrente, julgada improcedente, este tipo de exame, fundado no pareamento cromossômico, ainda não era amplamente disponível, nem havia notoriedade a seu respeito; (II) nessa primeira demanda a paternidade fora afastada com base em simples exame hematológico, o qual, como se sabe, no âmbito técnico-científico não possui a mesma robusteza do mencionado exame genético; e (III) na rescisória e na nova ação investigatória, ajuizadas posteriormente também pelo pai da ora recorrente, a despeito de o mencionado exame ter sido requerido, não fora aceita a sua realização, tendo sido as demandas extintas com base em ofensa à coisa julgada, formada naquele primeiro feito, e não com base na exclusão da própria paternidade.
Nesse contexto, os impedimentos havidos naquelas ações anteriores ao conhecimento definitivo e preciso da relação de parentesco existente entre o pai da ora recorrente e seu suposto avô não podem obstar esta nova ação movida por pessoa diversa, buscando alcançar direito próprio e personalíssimo de conhecer sua ancestralidade, agora com base em nova técnica da engenharia genética não disponível anteriormente.
Noutro giro, pode-se ainda ter em conta que a autoridade da coisa julgada reporta-se ao momento em que a sentença foi proferida, de maneira que nova relação jurídica ou nova situação de fato ou de direito surgida posteriormente - e que não tenha sido objeto do julgamento anterior, o qual, inclusive, envolvia partes, causa de pedir e pedido diversos - torna-se alheia à imutabilidade do instituto da res iudicata.
É oportuno invocar a lição de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, in verbis:
«Não é de hoje que, sempre forte na lição de Liebman, venho asseverando que a autoridade da coisa julgada material, sujeita-se sempre à regra rebus sic standibus, de modo que, sobrevindo fato novo, 'o juiz, na nova ação, não altera o julgado anterior, mas, exatamente para atender a ele, adapta-se ao estado de fato superveniente. Eis o ensinamento do Mestre:
'è superfluo dire che la cosa giudicata non impedisce l´eventuale sopraggiungere de fatti nuovi, che possono naturalmente modificare la situazione fra le parti (per es., l´adempimento del debitore, una transazione ecc.)'.
Tudo isso é muito natural quando se sabe que o instituto da coisa julgada material é movido pelo escopo prático de imunizar os efeitos do julgamento proferido acerca de determinada pretensão ou demanda, para que, naquela situação, outra decisão o caso não possa vir a ter jamais. Nem é por acaso que o direito positivo limita a coisa julgada não só às partes e ao objeto do pedido, mas ainda à causa de pedir. Fora da tríplice identidade não há a auctoritas rei judicatae, justamente porque, variando um desses elementos, o litígio já será outro (CPC, art. 301, § 2º). Nova situação, nova decisão. A garantia constitucional da coisa julgada (Art. 5º, inc. XXXVI) não vai além de estabelecer que, com relação ao litígio posto em juízo e na situação de fato ali considerada, novos questionamentos serão ilegítimos. Ela imuniza o decisum, como está claro no direito positivo, nos limites do que foi julgado.
(...)
As lições assim colhidas recebem legitimidade da óbvia observação de que a vida das pessoas e suas relações entre si e com os bens da vida não são algo estanque e imutável, insuscetível às evoluções conaturais à vida em sociedade. Não é permitido discutir mais se, no momento do trânsito em julgado, as relações entre os litigantes eram aquelas afirmadas pela sentença e sujeitas aos efeitos desta; mas, surgindo nova relação ou nova situação oriunda de fato ou negócio novo, essa nova relação - que não foi objeto de julgamento - considera-se alheia a ditos efeitos e, por natural conseqüência, alheia também à sua imutabilidade.
Claramente nesse sentido é a exposição de Bedaque, falando da coisa julgada como imutabilidade da sentença e de seus efeitos em relação ao direito já existente e proclamado: 'nada impede,, porém, que acontecimentos posteriores influam naquela situação, alterando-a. A decisão judicial, obviamente, não pode impedi-los. São fatos novos incidentes sobre a situação substancial será tanto menor quanto mais dinâmica ela se apresentar'.
(...)
Exatamente porque a coisa julgada se reporta ao momento em que a sentença foi proferida, sem considerações futurológicas de qualquer ordem, ela tem somente o significado de imunizar, sempre com referência àquele momento, os efeitos da sentença, sobre a qual incide. Se esta afirma a existência atual de um direito ou obrigação (atual no momento em que foi proferida), a coisa julgada impede que se volte a questionar a existência dessa situação jurídica naquele momento, mas não impede que se discuta sobre se depois dela o direito ou obrigação persiste ou deixou de existir.
(...)
Na ordem jurídico-positiva brasileira esses pensamentos transparecem na regra de que, 'passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas que a parte poderia opor assim ao acolhimento como a rejeição do pedido' (CPC, art. 474). Tal é a eficácia preclusiva da coisa julgada, que não se confunde com esta mas sem a qual a coisa julgada valeria muito pouco. Ela consiste em imunizar a própria res judicata a possíveis esvaziamentos mediante o exame de fatos anteriores. Diz-se que o efeito preclusivo da coisa julgada cobre o deduzido e o dedutível, sendo absolutamente imperativo entender-se, a contrario sensu, que não fica abrangida por qualquer matéria que, por ser posterior, não fosse (obviamente) suscetível de deduzir-se antes do julgamento da causa. Se o direito se extinguiu ou modificou-se depois da prolação da sentença e do trânsito em julgado, ou se de algum modo as relações jurídicas entre os que foram litigantes passaram a reger-se por outro negócio jurídico, tais são situações novas que, por não terem sido consideradas, não foram objeto de decisão e não ficam portanto cobertas pela coisa julgada ou por sua eficácia preclusiva.»
(in Fundamentos do Processo Civil Moderno. Tomo II. 6ª ed., Malheiros: SP, 2010, pp. 1.170/1.173, grifo nosso)
Na hipótese, o Poder Judiciário não pode desconsiderar os avanços técnico-científicos inerentes à sociedade moderna, os quais possibilitam, por meio de exame genético (DNA), o conhecimento da verdade real, delineando, praticamente sem margem de erro, o estado de filiação ou parentesco de uma pessoa. Com a utilização desse meio de determinação genética, tornou-se possível uma certeza científica (quase absoluta) na determinação da filiação, enfim, das relações de ancestralidade e descendência.
Relativamente ao caso sob exame, a decisão que deixou de acolher aquela referida ação rescisória ajuizada antes pelo pai da ora recorrente, fundada em documento novo, não se ajusta com a linha da jurisprudência desta eg. Corte de Justiça (cf.: REsp 653.942/MG; REsp 442.780/SP e REsp 300.084/GO).
Assim, sendo a paternidade anteriormente julgada improcedente em ação investigatória, com base em insuficiência de elementos probatórios (testemunhas ou exame sanguíneo inconclusivo), em período em que não era acessível a investigação de paternidade por exame genético preciso e hoje de fácil realização, deve ser possibilitada a rediscussão da relação de parentesco que, rigorosamente, nem chegou a ser negada antes, apenas não foi reconhecida. Agora, em nova ação investigatória, a relação avoenga poderá ser questionada por pessoa diretamente interessada, fundada em técnica científica precisa.
Sustentando posicionamento mais agudo, CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD bem delineiam o tema, perfilhando que o instituto da coisa julgada não pode ser visto de forma estanque, em desprestígio aos direitos, constitucionalmente consagrados, de filiação e de conhecimento da identidade genética e da ancestralidade. Eis as ponderações desses ilustres doutrinadores:
«4.5.20. A Coisa Julgada nas Ações Filiatórias
Historicamente, a coisa julgada na ação de investigação de paternidade esteve submetida ao sistema processual clássico, tornando imutáveis os efeitos decorrentes da sentença de mérito, contra a qual não mais seja cabível qualquer recurso.
Mesmo na hipótese de investigatória de paternidade promovida pelo Ministério Público, na qualidade de substituto processual, ainda assim os efeitos da coisa julgada se projetavam, atingindo o investigante.
Induvidoso, no entanto, que o sistema da coisa julgada do Código de Processo Civil, alçado a altitude de garantia constitucional (CF, art. 5º, XXXVI), não pode ter guarida nas ações filiatórias, dentre elas a investigatória de parentalidade, sendo necessário afirmar o desenho de um novo modelo de coisa julgada para regular tais demandas.
Importante destacar que esse novo sistema de regramento da coisa julgada independe de expressa previsão de lei, podendo ser aplicado aos casos concretos, a partir das concepções e princípios constitucionais, visando promover a dignidade da pessoa humana e a isonomia substancial, determinadas constitucionalmente.
Em suma: as regras ordinárias sobre a coisa julgada não podem ir de encontro a Lex Mater, nem - o mais importante! - se sobrepor aos direitos mínimos da existência humana, como a verdade sobre a paternidade. Pensar diferente e trafegar na contramão da história e colidir frontalmente com a evolução das pesquisas genéticas. Se assim não o fosse, qual a vantagem do avanço cientifico, do estudo da genética, por exemplo? A ciência, nesta área, está a serviço da verdade e se nos impõe usa-la. Veja-se, inclusive, que se a verdade é conceito de índole filosófica, sendo possível encontra-la, em tais casos, com o amparo cientifico, sobreleva sua utilização racional, a serviço do bem-estar do homem digno.
Não se pode canonizar o instituto da coisa julgada, de modo a afrontar a própria sociedade e o ser humano. Deve se ponderar pelo princípio da proporcionalidade qual dos interesses deve prevalecer no caso concreto: mais vale a segurança ou a justiça. E afigura-se-nos mais relevante prevalecer o valor justiça, pois sem ela não ha liberdade qualquer.
Mas não é só. E preciso observar que as ações sobre a filiação não podem ficar emolduradas nas estreitas latitudes da coisa julgada regulada pela lei processual (CPC, arts. 467 e ss.). Aliás, se a intangibilidade da coisa julgada quedou mitigada nas ações coletivas (relativas a relações de consumo, proteção ambiental, moralidade administrativa etc.), com muito mais razão deve ser relativizada, suavizada, nas ações filiatórias. Enfim, e injusto vedar-se para sempre a pessoa humana o direito de pleitear o reconhecimento de sua filiação, que se lhe constitui direito absoluto sagrado, indisponível e inerente a própria personalidade. Desse modo, e fácil perceber a necessidade de adaptação do sistema de coisa julgada nas ações filiatórias, respeitando as garantias constitucionais da pessoa humana.
Uma coisa é certa: as regras gerais sobre a coisa julgada, talhada no sistema individualista do Código Adjetivo, devem ser interpretadas com razoabilidade na ação investigatória, eis que poderia implicar a negação do próprio direito material correspondente, frustrando o caráter instrumental do direito processual, que serviria como óbice a concretização efetiva do direito a filiação, garantido constitucionalmente.
Veja-se, inclusive, que não se faz necessário justificar a propositura de qualquer ação rescisória, com vistas ao rejulgamento da ação filiatória, eis que a decisão judicial que não exaurir os meios de prova não passa em julgado afastando-se do manto sagrado da coisa julgada.
É mister afirmar, então, que a coisa julgada na ação investigatória se dará sob a técnica secundum eventum probationes. Ou seja, a coisa julgada se forma a depender do resultado da produção probatória, identicamente ao que se tem nas ações coletivas.
Também não se diga, ainda, que a coisa julgada constitui garantia prevista no Texto Constitucional, uma vez que a igualdade e a dignidade da pessoa humana também tem sede constitucional e o conflito de normas de igual hierarquia e solucionado pelo principio da proporcionalidade (poderão de interesses), devendo prevalecer, por obvio, a garantia ao reconhecimento da filiação. Ademais, não pode o processo servir de obstáculo para o exercício de direito material.
Reafirme-se, nesse passo, que e a norma constitucional protetiva do cidadão quem prevalece em nosso sistema jurídico. Por isso, negar o direito do filho em investigar a paternidade do seu pai, invocando barreiras ou formalismos processuais, e inaceitável e colide frontalmente com o principio da dignidade humana, fazendo tabula rasa dos direitos fundamentais.
Importantíssimo precedente sobre a matéria emanou do Superior Tribunal de Justiça:
'Processo Civil. Investigação de paternidade. Repetição de ação anteriormente ajuizada, que teve seu pedido julgado improcedente por falta de provas. Coisa julgada. Mitigação. Doutrina. Precedentes. Direito de Família. Evolução. Recurso acolhido. I - Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigado de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido. II - Nos termos da orientação da Turma, 'sempre recomendável a realização de pericia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza' na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, esta na substituição da verdade ficta pela verdade real. III - A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no caso da investigação de paternidade, deve ser interpretada 'modus in rebus'. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no reestudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, 'a coisa julgada existe como criação necessária a segurança prática das relates jurídicas e as dificuldades que se opõem a sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não ha liberdade IV - Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e as exigências do bem comum» (STJ, Ac.unan. 4ª T., REsp.226.436/PR, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j.28.6.01).
Pensar diferente e voltar no tempo, para entender que o processo deveria prevalecer sobre o próprio direito material. Assim, avulta afirmar a necessária relativização da coisa julgada pela jurisprudência, evitando tormentos e indevidas negações do direito a filiação.
A nossa jurisprudência registra, nesse sentido, importante passagem: 'mudou a época, mudaram os costumes, transformou-se o tempo, redefinindo valores e conceituando o contexto familiar de forma mais ampla que, com clarividência, pós o constituinte de modo a mais abrangente, no texto da nova Carta. E nesse novo tempo não deve o Poder Judiciário, ao qual incumbe a composição dos litígios com olhos na realização da justiça, limitar-se a aceitação de conceitos pretéritos que não se ajustem a modernidade'.
Vale registrar, por derradeiro, que, buscando tratar a matéria no plano positivo, apresentando uma solução de lege ferenda, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 116/01, de autoria do Senador Valmir Amaral, dispondo: 'art. 1Q A ementa da Lei 8.560/92 passa a ter a seguinte redação: 'Regula a investigação de paternidade'. Art. 2º O art. 8º da Lei n167 8.560/92 passa a ter a seguinte redação: (...) Parágrafo Único - A ação de investigação de paternidade, realizada sem a prova do pareamento cromossômico (DNA), não faz coisa julgada. Art. 3e Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.»
(in Direitos das Famílias. Lumen Juris: RJ, 2008, pp. 573/576, grifo nosso)
Destarte, por todas essas razões, não deve prevalecer o óbice da coisa julgada formada em outras demandas, envolvendo partes, pedido e causa de pedir diversas, em detrimento do direito fundamental ao conhecimento da identidade genética e da ancestralidade, relativo à personalidade e decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana consagrado na Constituição Federal (art. 1º, III).
Infere-se, portanto, que não há óbice de coisa julgada a inviabilizar o ajuizamento da ação cautelar de antecipação de prova pela pretensa neta contra o suposto avô (exame de pareamento cromossômico - DNA), para a instrução de futura ação de reconhecimento de relação avoenga.
Deve, nesses termos, ser garantido à recorrente o direito à busca da ancestralidade, ainda mais porque, nas lides anteriores ajuizadas por seu pai, não foram esgotados todos os meios possíveis à investigação eficaz da relação de parentesco existente entre o pai da recorrente e seu suposto avô. Há aqui, ainda, a possibilidade de realização de exame de DNA para aferir-se a ancestralidade da ora recorrente.
Portanto, o pedido deve ser considerado juridicamente possível e a parte deve ser tida como legítima para o ajuizamento da ação cautelar de antecipação de prova, bem como deve ser afastado o óbice da coisa julgada, viabilizando-se o curso da ação consubstanciada na realização de exame de DNA, para instrução de ação declaratória de relação avoenga.
Diante do exposto, dá-se provimento ao recurso especial, para, reconhecendo a legitimidade ativa ad causam da ora recorrente e a possibilidade jurídica do pedido, e afastando a ofensa à coisa julgada, determinar o prosseguimento da ação cautelar de antecipação de prova, retornando os autos ao d. Juízo a quo.
É como voto.


FONTE:http://www.legjur.com